I’m thinking of ending things: uma viagem entre expectativa e realidade
- Inês Delgado
- 31 de out. de 2020
- 5 min de leitura

O novo filme da Netflix de Charlie Kaufman uma adaptação do livro de Iain Reid, I’m thinking of ending things, com os atores Toni Collette, David Thewlis, Jesse Plemons e Jessie Buckley, deixou-me num estado catatónico de incompreensão profunda em que nunca nenhum outro filme me tinha deixado.
Em I’m thinking of ending things, um dos mais aguardados filmes de 2020, é inequívoco que os efeitos chegam antes de compreendermos a causa e, muitas vezes, nos perdemos na jornada, à primeira vista, inconclusa do filme. A história começa na mente de uma mulher, Lucy, no carro, a caminho de conhecer os pais do recente namorado, Jake (com quem não vê um futuro, daí os seus pensamentos se refletirem no título do filme).
Submersa em reflexões, Lucy, devaneia sobre os mais diversos assuntos pessoais. Um monólogo reflexivo acerca da sua vida, uma espiral entre expectativas e a realidade que, mesmo estando a girar apenas na sua cabeça, o namorado parece conseguir ouvir. Aí, debruçamo-nos sobre a primeira avalanche de questões “Como consegue Jake ouvir os pensamentos de Lucy? Pensam o mesmo? São a mesma pessoa?”.
De momento em momento, há cada vez mais peças soltas que parecem ser meticulosamente colocadas à nossa frente para serem interpretadas, por nós, como astros do cinema que gostávamos e sentíamos ser. E, consequentemente, de momento em momento, vemos a nossa convicção acerca da linha que a história poderia seguir definhar – o que me prendeu a um filme que, como muitas críticas previam, não é para todos.
E não é para todos no sentido de, objetivamente, ser demasiado grande para a paciência comum, estar construído sobre metáforas e não seguir uma linha direta.
I’m thinking of ending things não é um filme que segue cronologicamente um momento na vida das personagens principais, mas um filme que explora a mente depressiva e solitária de uma só personagem, fluindo entre o real e o imaginário, o que foi e o que podia ter sido.
À primeira vista, o filme está mergulhado em inconsistência. Lucy passa de estudante de Física, a Pintura ou, até, Gerontologia. E, nos entretantos, ficamos agarrados ao ecrã sem perceber se Lucy se chama realmente Lucy, se algum dos variados nomes que Jake lhe chama ao longo do filme é realmente o dela; questionando-nos das chamadas das “amigas” com nomes semelhantes ao seu e que falam numa voz masculina robotizada, que profere sempre a mesma frase, percebendo que talvez não estejamos a perceber. Num minuto, Lucy recita um poema da sua autoria, no outro não gosta de poesia e, muitas vezes, todas estas falhas na matriz estrutural do enredo, acontecem na mesma cena.
Depois de uma longa viagem pela tempestade de neve, quando finalmente chegam à casa dos pais de Jake, a impercetibilidade aumenta. A demora dos pais a descer e cumprimentar o filho e nova namorada, as constantes falhas na conversa ao jantar e o modo como os pais de Jake envelhecem e rejuvenescem ao longo da noite.
Enquanto o jantar decorre, a cena é interrompida por um solitário vigilante escolar a fazer as suas rondas - uma personagem que se assemelha a Jake ou à sua família, mas não é totalmente percetível. E o desfasamento que se cria entre os saltos espaciais de cenas que, aparentemente, nada têm em comum vem, mais uma vez, baralhar os espectadores. Quem é o vigilante? Qual é realmente a relação entre o passeio solitário, pelos corredores da escola, deste personagem com o enredo principal do filme?
Jake é uma peça bastante intrigante neste puzzle. Controlador e terrivelmente retraído, apresentando mudanças de humor agressivas quando é contrariado - ainda que timidamente, seja notório o orgulho que Jake nutre pela sua inteligência e pelos mais variados conhecimentos que possui. Durante a noite na casa dos pais deste, Lucy descobre um livro com o poema “Bonedog”, que na viagem de carro intitulou como seu, assim como na cave descobre as suas pinturas assinadas com o nome do namorado e, aí, a confusão é tanta. Será que Lucy não existe? Vive nos pensamentos de Jake? Será que, neste momento, só Jake existe?
A segunda metade do filme começa com o regresso a casa do casal que, rapidamente, se transforma numa viagem pela tempestade até à escola onde trabalha o vigilante. Lá, Lucy procura Jake que desapareceu e é lá que a explicação para tudo o que vimos inicialmente acontece, numa dança – uma dança sobre o que podia ter sido.
Por duas horas, vivemos num mundo brilhantemente confuso de Kaufman e vamos conseguindo compreender a importância e significado de detalhes que nos passaram ao lado, ou que reservamos na memória caso fosse importante no final. Também nós, os espectadores confusos, passamos por um nevão de sentimentos ou de não saber o que estamos a sentir. Percebi, no fim da primeira vez que vi o filme, que ter a ideia pré-concebida que este era de terror foi um erro. Todo o tempo passado a antecipar um “jump scare” ou a tentar ligar as imprecisões do discurso com algo assustador, mantiveram-me à tona do que realmente se passava e sobre o que realmente era o filme. À segunda já sabia o que ia acontecer, era certo, mas tudo fluiu como devia.
Toni Collette é, a meu ver, a estrela do filme. Traz verdadeiramente o acting que nos deixa perturbados, no sentido mais brilhante da palavra. É a protagonista do segmento mais angustiante e envolvente da trama, sendo que a transformação da personagem é, sem dúvida, a parte do filme que mais me cativou.
O final ainda me confunde. Sinto que qualquer sinopse que possa ser feita, não faz jus ao filme – frequente quando se trata de uma obra de Kaufman, que desde o Eternal Sunshine of the Spotless Mind se focou mais em aprofundar o psicológico, os conflitos emocionais e a condição humana (sempre de uma forma não convencional e inteligente, separando as nossas mentes da dele e conseguindo tocar na ferida de cada espectador certeiramente).
Repito: o final ainda me confunde, mas é também o momento em que tudo o que se passou começa a fazer sentido. Jessie Buckley desempenhou o papel da personagem de uma forma tão simples, fê-lo parecer tão fácil e intrínseco a ela própria que foi, para mim, difícil aceitar o propósito da personagem. O ingrediente secreto do filme é, em grande evidência, o argumento. Uma arma poderosa que em nenhum momento desilude. A genialidade do filme é ainda mais evidente no final, quando levamos um estalo da realidade, nos sentimos ignorantes, mas, rapidamente, nos revemos em algum aspeto da narrativa. Mesmo que o filme apresente aspetos potencialmente negativos como a longa duração e o ritmo lento da cena inicial, presenteia-nos, em força, com o grande final. O cinéfilo, que vive em cada um de nós, desesperou por aquele momento, com um cérebro fumegante por ansiar mil e uma respostas, e finalmente recebe-as de forma talentosa.
É no final que percebo o quão importante é sentir a angústia, a ânsia com pequenos mistérios e lacunas que vão surgindo, a incompreensão quase constante e o emaranhado de dúvidas em que ficamos presos. Kaufman queria que os sentíssemos. Esse era o grande objetivo de I’m thinking of ending things. Sentir a ausência de lógica e o pavor do desconhecido, do lembrado e do esquecido. Como a memória.
Seja pelo poema “Bonedog”, com um verso inicial penetrante e metafórico para o filme, pelo desempenho extraordinariamente perturbador dos atores, ou pela cinematografia, I’m thinking of ending things é uma viagem onde pretendo regressar. Ou um nevão por onde não me importo de conduzir. Há sempre uma ponta solta à espera de ser descoberta e, eu, estou sempre à procura.
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