Os poemas fazem-se, até sobre latas de sardinhas
- Jornal Espectro
- 30 de out. de 2020
- 2 min de leitura
Atualizado: 31 de out. de 2020

Na sala de aula estão seis alunos. As vozes difundem-se ao longe, mas uma coisa é percetível: estão à procura da rima perfeita para a palavra “sardinha”. “Uma bela sardinha no prato, com uma bonita escaminha”, diz Júlia Gomes, do fundo da sala, que com 72 anos está a aprender a ler e a escrever.
O Poeta Faz-se, uma oficina de criação poética para adultos, é um projeto que incorpora isso mesmo, aprender a ler e escrever, enquanto se aprende a escrever poemas. O objetivo principal é sensibilizar os alunos para a criação poética e desconstruir a ideia de que escrever poemas pertence apenas “aos outros”.
São sessões de cerca de três horas em que, como diz Albina Neiva “dá para aprender e para se divertir”. Entre discussões acerca do número de sardinhas que, uma vez, Júlia encontrou numa lata, “eram só três”, e a dúvida entre dizer “jindungo” ou “malagueta”, o poema vai-se construindo. Verso a verso.
Maria David Castro, uma das formadoras do projeto, ressalva que todos têm uma relação com a poesia, mesmo que o desconheçam. Sendo a escrita poética de todos e podendo ser sobre tudo, o uso de objetos concretos ou cenários do dia a dia dos alunos ajuda a criar, posteriormente, uma linguagem simbólica.
Albina, que trabalhou na confeção de latas de conserva durante muitos anos, fez questão de trazer algumas latas para um pequeno lanche no intervalo. Na hora da pausa, Albina confessou estar reticente quando soube que ia aprender a escrever poemas. Achava não saber muito sobre poesia, ou não saber o suficiente para escrever um poema, mas rimas emparelhadas sobre aquilo que conhece melhor, fizeram-na ter vontade de ir às aulas e comprometer-se a trazer latas de sardinha para todos.
Com 52 anos, Albina está a aprender a ler e a escrever, uma superação e motivo de orgulho “Eu, que tenho dois netos, vou poder dizer-lhes que a avó com esta idade foi para a escola e aprendeu”.
Depois do intervalo, o poema faz-se sobre a mãe de Maria José e os seus dez irmãos. Uma foto da mãe da poeta em construção circula pela sala, enquanto Maria José dita o que quer escrever à professora. “Há sessenta e um anos, a minha mãe andava a vender peixe”, assim começa o poema que rapidamente se desenrola em longos versos.
Para terminar Júlia lê um poema, um dos seus preferidos, “Frutos” de Eugénio de Andrade, e no fim distribui rebuçados que trouxe para os colegas. É a última aula de poesia que vão ter juntos.
Os poemas foram-se construindo. As rimas de Albina sobre Matosinhos, a mãe de Maria José e os seus dez irmãos e, até, sobre o “jindungo deste tamanho” que Júlia encontrou numa das latas de sardinha que comeu, estarão expostas em novembro, numa exposição na Biblioteca Municipal de Matosinhos.
Estas sessões, de um projeto produzido pelo Bairro dos Livros, integrado no Programa +Literacia, decorreram durante três semanas (de 29 de setembro a 15 de outubro), com o propósito de sensibilizar os alunos para a criação poética.
Para além de aprenderem a escrever, aqui os alunos aprendem que tudo é poesia, até uma lata de sardinhas. E que todos os poetas se fazem, com uma folha de papel e caneta na mão.
Por Ana Francisca Gomes e Inês Delgado
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