Peru: “A Guerra dos Tronos” que assola o país
- Fábio Lopes
- 21 de nov. de 2020
- 5 min de leitura

Uma avalanche política desenrola-se em solo peruano. Numa semana, o país conheceu 3 presidentes distintos e os protestos subiram de tom nas ruas da capital, Lima, tendo sido registadas 2 vítimas mortais. Importa conhecer o epicentro de toda a crise, que tem dividido uma nação.
É possível afirmar que a política peruana continua a viver ao ritmo de suspeitas e casos de corrupção. Os ecos do passado emergiram novamente e criaram um clima de revolta por todo o país.
Era de Vizcarra interrompida
A instabilidade política eclodiu na segunda-feira, dia 9 de novembro. O Congresso do Peru destituiu o Presidente Martín Vizcarra, dois anos e oito meses após ter chegado ao cargo. A moção para destituir o chefe de Estado, por “incapacidade moral permanente”, tinha por base o testemunho de quatro empresários, que disseram à Procuradoria terem visto o político a receber subornos – na ordem dos 2,3 milhões de soles peruanos, cerca de 470 mil euros - em troca de contratos de obras públicas entre 2013 e 2014, quando era governador de Moquegua, uma pequena província no Sul do país.
O processo foi apresentado pelo partido União para o Peru (UPP, movimento ultranacionalista indígena) e tendo sido aprovado por 105 votos a favor, quando eram precisos somente 87. O presidente de 57 anos negou categoricamente as acusações, que ainda estão a ser investigadas e criticou duramente o processo de destituição, aberto sob acusações não corroboradas pela justiça do país.

"Não existe prova de delito, nem existirá, porque não cometi nenhum delito, não recebi nenhum suborno. São dados falsos, não corroborados, de um processo de investigação que está apenas a começar, são hipóteses", disse Vizcarra.
Apesar disso, praticamente todas as bancadas do Parlamento se mostraram hostis para com o mandatário, que foi acusado de ser "mentiroso", "imoral", "corrupto" e responsável por toda a instabilidade política que se vive no Peru.
Independente, que fazia da luta contra a corrupção a sua bandeira, saiu do poder à segunda tentativa de destituição. A abertura do primeiro processo de impugnação, que remonta a setembro, teve como catalisador três gravações áudio, partilhadas com os deputados peruanos, nas quais se ouve Vizcarra a pedir a testemunhas que escondam a verdade sobre a investigação de um caso de alegada corrupção, relacionado com a contratação, pelo Ministério da Cultura, de um cantor, produtor e amigo do Presidente, que levantou suspeitas sobre uso indevido de dinheiros públicos.
Algumas horas depois da votação, o chefe de Estado falou ao país acompanhado de alguns dos seus ministros. Voltou a negar as acusações e confessou sair de “consciência tranquila”.
Vizcarra é o quinto Presidente peruano afastado por corrupção. Os últimos quatro caíram no escândalo de corrupção e financiamento ilegal de campanhas eleitorais que envolve a construtora brasileira Odebrecht.
A curta estadia de Manuel Merino no poder
Por não ter vice-presidente – dado que Vizcarra era o número dois de Pedro Pablo Kuczynski e assumiu o cargo quando este se demitiu, em março de 2018 -, a Constituição do Peru dita que a presidência deve ficar nas mãos do líder do Parlamento.
Foi nesta conjuntura que Manuel Merino, de centro-direita, subiu ao poder. Jurou como presidente na terça-feira, dia 10 de novembro, porém os protestos já eram uma constante por todo o país. Insatisfeita com o rumo político que o Peru atravessa, a população inundou as ruas de norte a sul, por seis noites consecutivas, mostrando claros sinais de indignação para com o veredito. Perante este cenário, Manuel Merino apelou à calma e deu garantias de que, como o previsto, os peruanos iriam às urnas a 11 de abril para eleger o próximo presidente, cuja tomada de posse está prevista para finais de julho de 2021.

Contudo as pretensões do dirigente esbarraram contra a popularidade de Martín Vizcarra, que goza da simpatia popular. O seu afastamento foi visto, por muitos, como uma afronta, que saíram em sua defesa. Os gritos de revolta foram subindo de tom, assim como as manifestações - há quem diga que foram as maiores desde a saída de Alberto Fujimori do poder, em 2000.
O ponto de ebulição chegou no sábado, dia 14 de novembro. Milhares de manifestantes, na sua maioria jovens com menos de 25 anos, saíram novamente às ruas, em várias cidades do país, para exigir a demissão de Merino e denunciar o que consideram ser um “golpe de Estado parlamentar”.
Hasteando cartazes como "Merino, tu não és o meu presidente" ou "Merino impostor", prometeram não baixar os braços. O auge dos protestos culminou com 2 mortos, um jovem de 25 anos com ferimentos de arma de fogo na cabeça e um de 24 anos, alvejado quatro vezes, como nos conta a agência de notícias espanhola Efe. Pelo menos 102 pessoas ficaram feridas, das quais 63 foram hospitalizadas, e há 41 desaparecidos, segundo o gabinete do provedor de justiça.
Violência policial, o outro lado da barricada
A ação policial tem estado na “mira” da ONU e de organizações de direitos humanos, como a Amnistia Internacional, que a têm criticado duramente, desde o início do conflito.
"Os vídeos verificados digitalmente pela Amnistia Internacional são provas contundentes da violência perpetrada pela polícia contra a população que devia proteger", disse a organização não-governamental em comunicado. A repressão a esses protestos custou o pouco apoio político que tinha Merino e que marcou a ferro e fogo a sua breve e polémica gestão.
A pressão sobre o presidente aumentou, e não veio só das ruas. Em algumas horas, 13 ministros apresentavam a demissão e o Congresso virava as costas a Merino, selando o seu destino. A demissão do presidente tornou-se rapidamente numa matéria consensual, sucumbindo assim a toda a agitação que envolvia o país.

Na sua comunicação ao país, Merino reconheceu que o país “atravessa uma das maiores crises políticas” da sua história e acrescentou “Quero deixar claro a todo o país que apresento de forma irrevogável a minha renúncia ao cargo da presidência e apelo à paz e unidade para todos os peruanos.”
As ruas festejaram a sua saída e o procurador-geral já abriu uma investigação preliminar às mortes contra Merino.
À terceira será de vez?
Na manhã de segunda feira, dia 16 de Novembro o Perú acordou novamente sem presidente. Como estipulado, coube ao Parlamento designar um sucessor de Merino, ou melhor, eleger uma nova direção, sendo certo que o líder é automaticamente presidente interino. Ainda mesmo no domingo, os deputados tentaram eleger Rocio Silva Santisteban, de esquerda, que aparentava ser um nome consensual, dado que se tratava de uma lista única.
Porém, a antiga ativista dos direitos humanos não conseguiu o apoio esperado, arrecadando apenas 42 votos a favor (ficando aquém dos 60 necessários), com 52 votos contra e 25 abstenções. Este resultado criou um ambiente de surpresa e obrigou a uma nova votação para dia 16. Desta feita foi um novo nome sugerido para presidir o Congresso e consequentemente passar a presidente: Francisco Sagasti.

Pertencente ao Partido Morado, o engenheiro peruano de 76 anos foi aprovado com 97 votos a favor, 26 contra e nenhuma abstenção. Ficava assim cumprida uma exigência dos manifestantes – ser eleito alguém que não tivesse votado a favor da destituição de Vizcarra, o que se confirma com a escolha de Sagasti, uma vez que o Partido Morado se tinha oposto à saída do ex-presidente.
Na cerimónia de tomada de posse, afirmou depois que as suas prioridades durante o mandato passam por: garantir a transparência na realização das próximas eleições no país, que devem acontecer em abril de 2021, assim como combater a crise profunda que o país atravessa.
De acordo com a BBC, esta crise política ocorre numa altura em que o país enfrenta uma instabilidade económica e social imensa, para além de ter sido gravemente fustigado pela pandemia de covid-19. Segundo os dados da Universidade Johns Hopkins, o Peru teve mais de 922 mil casos de infeção e quase 35 mil mortes, até ao momento.
O futuro político do Peru é ainda um ponto de interrogação enorme. As heranças do passado recente não permitem afirmar com clareza o que irá acontecer, mas uma coisa é certa: o receio de voltar a cair nas amarguras dos esquemas de corrupção é muita, atendendo ao seu historial.
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