top of page
Logo_Invertido-12.png

Rui Tavares: “A Política tem uma urgência que as outras coisas não têm”

  • Foto do escritor: Jornal Espectro
    Jornal Espectro
  • 20 de jan. de 2021
  • 26 min de leitura

Atualizado: 19 de abr. de 2021


Diz ser um filho de Abril. Nasceu apenas dois anos antes da revolução e viveu tudo que dela adveio, sendo-lhe impossível desfazer-se de uma consciência política sempre muito presente. Dividiu a sua infância entre uma pequena aldeia do Ribatejo e um bairro pobre de Lisboa. As noites escuras na Arrifana potenciaram-lhe uma imaginação fértil e profundos pensamentos que na altura não percebia serem filosóficos.


Rui Tavares perdeu-se em manifestações e sempre leu muito para perceber qual era o seu lugar. A biblioteca fê-lo libertário e ditou que estudaria, mais tarde, História. Nunca esteve nos planos fazer política, mas por via das circunstâncias lá aconteceu. Foi eurodeputado entre 2009 e 2014 - ano em que fundou o LIVRE. Ecologista e europeísta convicto, pegou nas suas crenças e escreveu-as nos princípios fundadores do seu partido.


Escritor, colunista, historiador e professor nas horas vagas, faz das palavras a sua vida. Um contador de histórias nato, deambula sobre os mais variados temas: os filhos, filosofia, o anarquismo, e os seus projetos de vida. O Espectro esteve à conversa com Rui Tavares.



Numa entrevista o Rui dizia que mais do que ser um cidadão do mundo, era “um aldeão do mundo”. Em que é que o Rui acha que a vida numa aldeia mais o moldou? Seja na sua forma de ver o mundo, politicamente, ou na sua personalidade.


Em primeiro lugar, para ser rigoroso, eu cresci naquela aldeia do Ribatejo e em Lisboa também. Ou seja, nós, enquanto família, transitamos duas vezes. Eu nasci aqui em Lisboa, vivi os primeiros anos, mas que eu não me lembro muito bem, num bairro popular, até de classe-baixa ou mesmo pobre em alguns aspetos. Era constituído por famílias que tinham migrado de todos os lados do país, no nosso caso de uma aldeia no Ribatejo - a Arrifana. As minhas primeiras memórias já são dessa aldeia.


Isto para não se fazer uma imagem que depois não corresponda completamente à realidade, porque eu na verdade durante muito tempo tive essa intermitência. E depois quando voltei definitivamente a Lisboa, é engraçado, demorei um bom bocado, já bem adentro na minha adolescência, a assumir esse lado lisboeta. Demorei a reabituar-me à cidade, e mesmo a gostar da cidade, que é uma pela qual hoje em dia sou apaixonado, mas isso demorou.


Mas então, em que é que isso me moldou? Eu creio que há coisas em que viver numa aldeia é mais ou menos igual em qualquer parte do mundo, e pode ser diferente de viver em cidades dos mesmos países. Embora as aldeias sejam todas muito diferentes umas das outras, e aquilo que é considerado aldeia num país pode não ser noutro, mas existe uma experiência em termos de compensar o isolamento com a imaginação, de termos que efabular o mundo exterior, porque ele não nos entra pela janela todos os dias. Apesar de, evidentemente, haver televisão com dois canais a preto e branco, que não víamos assim muito e que só começava às 6 da tarde. Depois tudo o resto é delimitado pela paisagem. E isso tem elementos de afeto por determinadas coisas, como por exemplo, uma árvore, uma oliveira, pelos bichos, nós tínhamos ovelhas, chegamos a ter cabras.


O aspeto do mundo dessa expressão "aldeão do mundo" tem muito a ver com, por exemplo, uma espécie de imaginação infantil que tinha, que só me lembrei muitos anos mais tarde, e que, evidentemente, crianças em cidades também podem ter, mas que de certa forma o isolamento e a noite escura, havia eletricidade na aldeia mas não há muito tempo, faziam-me fantasiar, enquanto não adormecia, se não haveria, do outro lado do mundo, na China, uma criança a pensar exatamente o mesmo que eu.


E agora vocês estão a acenar e a dizer que sim, e isso é curioso, e eu creio que isso é uma experiência partilhada. Há muitas crianças, se não eventualmente todas, que têm o mesmo pensamento, e esse mesmo raciocínio. Acho que essa noção que hoje nós, de certa forma, nos esquecemos dela, porque achamos que é um raciocínio infantil, e logo sem importância. E eu só me relembrei disso muito recentemente, num debate onde havia gente de vários países do mundo, e quando fiz essa referência, quase que numa de “olhem aquilo que me lembrei agora”, e havia várias pessoas na plateia que começaram a fazer esse gesto que vocês fizeram. E as pessoas confirmaram-me que tinham exatamente o mesmo pensamento.


E eu, refletindo sobre isso, comecei a perguntar-me se essa não era a base de um certo pensamento filosófico. Porque as crianças têm muitos raciocínios de tipo filosófico. São capazes de fazer muitas experiências pensadas, estão sempre a pensar em trocar de lugar e de posição. Sei lá, eu tenho um miúdo de três anos e uma bebé de um ano e meio, e o mais velho agora passa o tempo todo a dizer que é um gato, que é cão, que é um morcego, e a tentar perceber como era ser daquela maneira. E isto, parecendo que não, que é só uma coisa de criança, existe. Há um célebre artigo filosófico de Thomas Nagel, que se chama "Como é ser um morcego".


É de facto uma matéria de reflexão filosófica de pergaminhos académicos, pensar se é possível alguém sentir-se como um morcego, a resposta desse filósofo é que não. Mas isto para dizer que as crianças têm raciocínios de tipo filosófico, até bastante profundos. Outras coisas que são típicas nas crianças são os monstros debaixo da cama, ou imaginar se aquilo que não vemos existe ou não existe, são coisas que aparecem em Descartes, são coisas que aparecem em filósofos importantes. Na verdade, se calhar esses filósofos são pessoas que não perderam essa capacidade de questionamento enquanto crianças, e que depois só a completaram com um rigor analítico maior.


Acha que levou isso do “não me parar de questionar” para a sua atividade política?


Não, eu creio que estou agora a recuperar isso, e se calhar porque agora sou pai, e entretanto me interesso por este tema de como estas perguntas, supostamente ingénuas e que nós às vezes nos envergonhamos delas, têm na verdade um impacto filosófico muito grande. Reparem, esse mero raciocínio de um rapaz de aldeia, estar a pensar que existe alguém do outro lado do mundo a pensar a mesma coisa que ele, está na base da ética, sermos capazes de nos colocarmos no lugar do outro, está na base das discussões sobre se o cérebro humano é uma máquina universal, e portanto, se aquilo que uma pessoa é capaz de pensar é o mesmo que outra, e está na base também de questões de discussões de universalismo e relativismo. E condensado ali numa imaginação de criança. Portanto, aquilo que me interessa é recuperar a validade e até a sofisticação desse tipo de pensamentos que nós, em geral, achamos ingénuos. Tipos de pensamentos que toda a gente tem, não só os filósofos ou académicos profissionais. E dizer às pessoas que esse tipo de questionamento interior faz sentido e deve ser valorizado, e que nós nos tornamos pessoas mais sábias por causa disso.




Mas entretanto desviei-me da pergunta, porque ser um aldeão do mundo é, depois de sair da aldeia, ter um sentido de maravilhamento com o resto do mundo, que eu não consigo bem descrever. Mas creio que é especial. Devo dizer aliás que a primeira vez que ouvi, não essa expressão, mas essa descrição feita acerca de mim foi de forma pejorativa. Foi num contexto político em que alguém me dizia que eu era um daqueles tipos de saía da aldeia e depois ficava deslumbrado com o mundo exterior. E eu quando ouvi essa crítica pensei "Mas é isso mesmo!" (risos). Faz todo o sentido, e na verdade como não? Como não sentirmo-nos deslumbrados com a abundância que o mundo exterior tem, ao mesmo tempo que preservamos todo o afeto e o amor que temos pelo lugar de origem. Isso sim, de certa forma, acho que tem um impacto político naquilo a que podemos chamar de cosmopolitismo. Ou seja, ser-se cidadão do mundo não se significa ser-se cidadão de nenhum lugar, significa ter um sentimento de responsabilidade por todos os lugares do mundo. Talvez especial por aquele onde se vêem, mas não descuradamente.



Acha que foi também essa curiosidade que o levou a querer estudar história? Ou a ter tanto gosto pela história?


Eu fui estudar História por acaso. A resposta curta à sua pergunta é sim. A resposta um bocadinho mais longa é que, na verdade, quando eu comecei a dizer que queria ser historiador, eu não sabia o que isso queria dizer. Eu ouvi a palavra numa conversa entre os meus pais, achei a palavra interessante, e achei a descrição que o meu pai fez da palavra, aliás, de forma um bocado jocosa porque ele na verdade nessa conversa estava a espicaçar a minha mãe porque era ela que gostava de história e ele não, mas depois descreveu-me: "ah, não, historiador é aquele que quer saber da vida dos outros" (risos). Foi assim uma resposta muito prosaica e eu achei aquilo muito interessante.


Depois é que me fui habituando a gostar de História. Sendo que ela tinha um apelo grande para mim como uma espécie de falso introvertido que sou, porque era aquele prazer da solidão e do isolamento, do arquivo e da biblioteca e das fontes escritas. Um sociólogo também tem curiosidade sobre a vida dos outros, só que passa o dia a falar com os outros. Eu até sou um grande tagarela, e gosto muito de encontrar pessoas e as conhecer nas ruas, mas preciso muito de um tempo de recuo, e esse tempo é o da leitura, e isso os historiadores têm. É um espaço de arquivo e da biblioteca. Portanto, fui aprendendo a gostar mais de História à medida que fui avançando na vida, e aliás, hoje sinto-me mais contente com essa escolha de vocação que fiz do que nunca.



Agora voltando só um bocadinho atrás à sua família e à biblioteca também. Fala muitas vezes da sua família ser de esquerda e sobre isso ter influenciado o facto de ser de esquerda. Fala também de um dos seus melhores amigos de infância que era de direita monárquica. E eu tinha um pequeno jogo hipotético para lhe fazer, um pouco como fez no seu livro "Pequeno livro do Grande Terramoto" que era inverter os papéis com o seu amigo. O Rui era afinal de uma família de direita monárquica e tivesse a mesmo reflexão e as mesmas viagens à biblioteca que fez na altura para ler sobre política. Acha que se teria tornado na mesma de esquerda?



Não sei responder em toda a sua extensão. A verdade é que eu não perdi completamente esse amigo. Nós não estamos em contacto permanente, creio que não temos o telefone um do outro. Mas de vez em quando encontramo-nos na rua, porque apesar de tudo ainda moramos a poucas centenas de metros da escola onde andamos, portanto não é incomum nos encontrarmos. E há uma coisa curiosa também, numa campanha eleitoral do LIVRE que fizemos em 2015, num desses movimentos que se juntou ao LIVRE nessas eleições estava o companheiro desse meu amigo. Portanto é um casamento entre dois homens, e têm um filho adotado. Não faço ideia se esse meu amigo ainda é de direita ou não, mas imagino que na sua família, que era uma família muito conservadora, ou não, talvez aqui seja o preconceito a falar, o que sei certamente é que na altura em que nós nos conhecíamos era absolutamente impensável, estamos a falar de 83/84, que um dia viesse a haver casamento entre pessoas do mesmo sexo. Ou, mais ainda, se um dia viesse a chegar, seria dali a 100 anos, para os mais otimistas. Ninguém imaginaria que esse tema entraria no debate nos anos 90, e que no início dos anos 2000, numa quantidade considerável e crescente de países desenvolvidos, seria possível então esse tipo de casamento.


O que eu retiro desta história é que temos que estar abertos, como se diz corriqueiramente, às voltas que a vida dá e elas são sempre maiores do que aquilo que a gente imagina. Na verdade, de uma forma não tão imprecisa, eu não imaginaria que a minha família sendo de esquerda, iria ter alguém em casa a festejar a queda do muro de Berlim. Mas a verdade é que a mulher de um dos meus irmãos era checoslovaca, e ela sentiu isso dessa maneira. O que nos valeu a uma espécie cisão na nossa família, porque naqueles Natais e naqueles Anos Novos de 1989 e de 1990, nós não conseguíamos deixar, porque conhecíamos a Sharka, de perceber que aquilo que as pessoas de Leste queriam era a mesma liberdade que nós tínhamos tido em 74. E isso era uma coisa que era absolutamente incompreensível para os meus tios militantes comunistas.


Acho basicamente que isto nos ensina a avançar no futuro de uma forma não dogmática e a deixar a nós próprios espaço para evoluirmos em relação aos nossos dados de partida. Eles não nos precisam de nos determinar, mas vão continuar sempre a influenciar-nos.



O que é que acha que o levou um bocado mais para o lado libertário dentro da esquerda em comparação a outros membros da família que eram mais marxistas e marxistas-leninistas até?


Aí foram as leituras. É uma questão de ideias. Claro que cada um tem a sua história. Ao passo que a minha pertença à esquerda é uma pertença de valores e de convicções, evidentemente, mas biograficamente, explica-se de uma maneira que já estivemos a falar. Mas o lado libertário não tem esse lado de influências familiares ou até de amigos. Foi completamente derivado de leituras. Aliás, eu comecei a ler autores libertários ou anarquistas, pensando que iria encontrar razões para os desconsiderar, como era um bocadinho o caso dos meus irmãos e primos e tios de achar "ah, aqueles anarquistas são uns ingénuos, uns ignorantes, não percebem as leis da história, não explicam os capitalismo, não têm capacidade de constituir uma vanguarda para chegar à ditadura [do proletariado]", aquele jargão todo. E quando comecei a ler esses autores, foi uma surpresa ver que eles eram, para já, muito plurais e fiquei fascinado eles quando esperava que iria comprovar que eram fáceis de refutar e que eram uns autores muito básicos e ingénuos.


Mas depois disso, eu achava que não havia anarquistas reais. Como eu só tinha lido nos livros, foi uma vez uma surpresa ir à feira do livro em Lisboa e encontrar um grupo de velhinhos que vendia “A Batalha", que é um jornal que ainda existe e que é o jornal político mais antigo de Portugal, de 1919. Aqueles velhinhos tinham sido crianças na 1ª República, passado os 48 anos da ditadura e, a seguir ao 25 de Abril, muitos deles retomaram a obra que tinha sido dos pais ou até deles mesmo quando eram muito jovens.


Tinham passado vidas de emigração, um tinha mais de 90 anos e tinha vivido na Argentina chamado José de Brito, que era um herético no meio dos anarquistas, porque achava que deviam votar e deviam fazer partidos e entrar no jogo parlamentar. Os outros ainda eram mais, não todos mas bastantes, abstencionistas. Havia uma senhora que creio que se chamava Lígia que tinha aprendido Esperanto no tempo da Guerra Civil de Espanha.


Bem, ou seja, isto para dizer que a minha entrada na escrita e nas ideias e na literatura libertárias foi de tal forma livresca, foi de tal forma isolada no tal espaço da biblioteca, que eu não fazia ideia que estas pessoas existiam mesmo. Eu achava que o movimento anarquistas tinha acabado em 36-39, e que não havia sobreviventes. E guardo com muito carinho, como acho que é visível da maneira como vou estou a contar, essa espécie de segunda educação política, que foi completamente distante da da família.



O Rui claramente sempre teve política presente na sua vida, até porque lia muito e procurava saber muito por si próprio. Mas quando é que a política começa a ser uma realidade na sua cabeça e começa a querer fazer política? E porquê?




Eh pá, isso é muito tardio. Eu sempre me interessei por política e sempre me apaixonei por discussões políticas. Eu nasci em 72, e isso de certa forma vem com a biografia. As primeiras memórias que eu tenho, que são ali do pós-25 de Abril, entre estar toda a gente em frente à televisão a ver os debates, eu não tenho memória de ter visto o debate entre o Soares e o Cunhal, mas lembro-me que só se falava disso. Lembro-me das primeiras manifestações a seguir ao 25 de Abril, lembro-me de me ter perdido numa dessas manifestações. Portanto, são memórias muito vivas, havia cartazes por todo o lado e havia uma tal intensidade da discussão política que não era só entre os adultos, mas entre as crianças também. Hoje em dia o pessoal à direita se queixa que a esquerda exagera muito a chamar fascista a toda a gente, e é uma queixa que faz algum sentido. Embora eu acho que não se pode tirar daí a conclusão que então não há fascismo porque alguém de esquerda alguma vez exagerou a chamar alguém de fascistas, então não podemos chamar fascistas a tipos que fazem saudações nazis e que dizem tudo o que os fascistas diziam. Mas na altura era mesmo verdade (risos), nós estávamos a jogar à bola e um tipo se se zangava, fascista era um dos primeiros insultos que saíam.


Um dos primeiros jogos de futebol que eu me lembro de ter visto, a final do Campeonato do Mundo de 1978, que a Argentina ganhou à Holanda, eu achei piada à Argentina, por causa do nome do país, e os meus amigos lá da aldeia ficavam lixados comigo porque não se podia apoiar a Argentina porque era fascista. De facto, era uma ditadura de extrema-direita autoritária dessa época. E até o Cruyff não foi jogar à Argentina precisamente porque não jogava num país em que as pessoas eram sequestradas e desaparecidas. Eles tinham razão (risos), era uma falha política.


A política sempre foi muito fascinante. Mas exatamente da mesma forma, sempre tive uma rejeição a fazer política, na verdade. Durante muitos anos da minha vida, eu disse para mim mesmo "eu nunca vou querer participar em eleições, ser candidato". Depois aquilo fascinava-me e eu achava que na verdade era uma coisa interessante, mas era um pensamento que eu, de certa forma, censurava em mim mesmo. Porque queria privilegiar completamente a minha vocação só de historiador. Depois tive um bocadinho na política estudantil, na escola secundária e na universidade. Contra a primeira PJA e em cima de tudo contra o aumento das propinas. E isso foi um movimento que formou imensa gente. Há muita gente de um início dos anos 90 na altura na universidade que participou nestas manifestações. Eu aí fui dirigente de uma associação de estudantes. E algumas das coisas interessantes da política, mas também dos seus maiores vícios, vi enquanto dirigente estudantil.


Em 93, o lado mau da competição política, dos ataques, desses tipo de coisas, desgostou-me e, basicamente, pensei "eh pá, vou fazer aquilo que é a minha vocação". As minhas notas começaram imediatamente a subir, fui fazer o mestrado, tive bolsa, fui fazer o doutoramento, e portanto isso para mim estava encerrado. Não tinha vontade de voltar àquele tipo de atividade frenética e onde as rivalidades têm aspetos francamente desagradáveis.



O que é que o fez mudar de opinião?


O que me fez voltar a escrever em blogues e depois num jornal, no Público, onde ainda escrevo, foi a Guerra do Iraque em 2003. Foi também um primeiro apuramento de políticas de austeridade no governo de Durão Barroso, que foi de 2001 até 2005. E portanto ter sido apanhado nessa revolução, que foi de curta duração mas muito interessante, da blogosfera, que por sua vez chamou à atenção dos jornais. Chamou a atenção de uma editora que na verdade era uma editora que foi fundada por amigas minhas, colegas de faculdades, que é a Tinta da China. Aí publiquei o meu primeiro livro, o livro do Grande Terramoto. E eu que sempre achei que iria mais dar aulas, e quando tivesse algum tempo escrevia alguma coisa, encontro-me na situação exatamente contrária. Eu principalmente vivo da escrita, e de vez em quando consigo fazer o gosto ao dedo de dar aulas, que é uma grande pena minha não ser permanentemente professor, porque é uma coisa que gostaria mesmo de fazer.


E isso chamou à atenção de alguém com quem eu tinha trabalhado no primeiro jornal para o qual eu escrevi, sem ser a "Batalha Anarquista", que foi o Miguel Portas, que tinha sido o diretor do "Já". Convidou-me para as listas do BE em 2009 das Europeias, num lugar que era não-elegível, ou pelo menos todos nós achávamos isso. A minha intenção era ajudar a corrente europeísta dentro do Bloco, que era representada pelo Miguel na altura.


Depois deu-se a rutura com o Bloco, que também sofreu uma inflexão num sentido mais anti-UE, eurocético, e até eurofóbico. Eu tinha sido eleito como independente, o país estava a viver a austeridade da Troika, e aí é que tive mesmo de pensar "mas então o que é que vou fazer?". Com um grupo de gente fizemos um manifesto para uma esquerda livre, que teve algum sucesso porque pôs em cima da mesa a questão da convergência à esquerda, mas percebemos que as direções dos partidos não queriam de todo acompanhar essa ideia. Davam alguma conversa mas não tinham vontade de acompanhar essa ideia.



Então aqui é surge a ideia do LIVRE? Um bocado pela força das circunstâncias do contexto político português da altura?



Sim, de certa forma, sim. Nesta altura ocorreu o Congresso Democrático das Alternativas. E a certa altura a questão que se colocou entre as pessoas que queriam que houvesse aquilo a que mais tarde se veio a chamar de Geringonça era: nós só com cartas abertas, manifestos e debates não vamos lá. Muitas das pessoas, e eu incluído, tinham uma enorme renitência em relação à ideia de fundar um partido. E não queriam fazer da sua vida a vida da política partidária. Por outro lado, alguns de nós, tinham a sensação, que acho correta e que se veio a comprovar, de que sem a fundação de um partido não seria o suficiente para influenciar os partidos. Não diria que foi de uma forma determinante, mas de uma forma muito mais potente do que meros manifestos ou debates poderiam fazer. Porque, infelizmente, se há linguagem que os partidos entendem é a linguagem da concorrência, incluindo à esquerda.


A isso juntava-se a minha grande pena, enquanto leitor, de não haver em Portugal nenhum partido da família Verde Europeia, verdadeiramente não haver, porque o PEV é um partido satélite do PCP. Portanto, um partido como os verdes alemães, como a esquerda verde holandesa, como os verdes franceses, não havia em Portugal. E isso frustrava-me como eleitor, sempre tive uma grande pena de não existir.


Houve uma experiência ou outra no passado, não vos vou maçar isso com isso, mas o MDP/CDE, nos anos 80, tentou ser isso, e depois foi com grande alegria que o José Manuel Tengarrinha, que tinha sido o líder histórico do partido, entrou no LIVRE, nos seus últimos anos de vida. Portanto de certa forma o círculo aí fechou-se. E depois há uma altura das nossas vidas, das nossas vidas todas, e vocês se não o tiveram já, irão ter, em que nós temos que dizer o nosso grande sim ou o nosso grande não - é um poeta grego que é o [Konstantínos] Kaváfis que tem essa expressão. Mesmo que isso contradiga promessas que fizemos a nós mesmos.


E pronto, esta é a explicação também muito longa de como eu continuo a viver nessa pulsão contraditória, e de às vezes ter vontade de me dedicar apenas aos livros e à história, mas por outro sentir também que há certas coisas que se não for a gente a fazer, não vão ser feitas. Acho que essa é uma lição muito importante. No fundo é uma lição dupla. Há coisas que nós podemos passar o dia a pensar que deviam existir e não existem. E que é uma pena, nomeadamente em Portugal temos muito este discurso, que não haja esta profissão, que é uma profissão que há no estrangeiro e não aqui. É uma pena que não haja aquele tipo de universidade que gostaria, aliás, esse até é muito mais o meu sonho do que o partido, é a ideia do Instituto Ulisses, que eu persigo há uns anos, e a ver se dou agora uma chance de a fazer.


Na verdade, quando nós dizemos isso a nós mesmos, nós temos uma obrigação de perguntar: "então, se é assim, não deveria estar eu a fazer isso?". E depois muitas vezes não a fazemos porque temos uma espécie de uma timidez, achamos que quem faz essas coisas são aquelas pessoas que só encontramos nos livros, nas enciclopédias. E aí há uma coisa que eu defendo que eu defendo que é o "desenciclopedizar" esses nomes, para dizer às pessoas que se acham apenas pessoas comuns, que esses nomes das pessoas com as quais nos revemos e admiramos e que vemos como exemplos de humanidade, também eram pessoas comuns.


Viveram a mesma juventude, os mesmos dilemas, tiveram os mesmos problemas, às vezes até eram pessoas banais, que fizeram coisas extraordinárias. Se nós distribuirmos essa ideia por toda a gente, se calhar não precisamos todos de ser um Martin Luther King ou um Ghandi ou um Aristides de Sousa Mendes, mas podemos todos, e acho que merecemos todos, ter uma hipótese ao longa da vida de fazer qualquer coisa de grande ou extraordinário.

Aliás, a sociedade está mal organizada porque não dá a toda a gente os mesmos recursos de tentar fazer essa coisa de grande ou de extraordinária.



O Rui já disse, mais do que uma vez, que queria sair da vida política quando Portugal estivesse há mais tempo em democracia do que em ditadura. Como é que surgiu esta ideia? É claramente um dado simbólico, mas como é que lhe surgiu?


É algo que tem um contexto. Portanto, eu tinha sido eleito, inesperadamente, para o Parlamento Europeu, não era uma coisa com a qual estivesse a contar, nem mais ninguém na altura estava a contar. Aliás, fui o último deputado a ser eleito, tivemos de esperar pela contagem dos votos dos consulados e a diferença foi de 800 votos. Portanto, foi uma coisa mesmo bastante inesperada. E, de repente, eu estava a fazer uma coisa muito diferente daquilo que me tinha proposto a fazer. Uma coisa eu sabia, sabia que não aceitava de mim mesmo que eu viesse a ser aquele caso típico do intelectual que vai fazer política, um bocadinho de uma forma displicente, ou diletante. Não! Se eu era agora, inesperadamente, representante eleito era para levar muito a sério o mandato, era para trabalhar intensamente, eu diria quase insanamente. Foi um mandato que quis trabalhar muito.


Era para fazer coisas que nunca tinha visto serem feitas, como aquela bolsa de estudos que eu criei, com o salário parlamentar europeu e nesse contexto, claro que se colocou a questão ainda antes da rutura com o Bloco - então, mas agora estou a fazer isto, e isto tem que ter um limite. Há um dia em que eu tenho de regressar a fazer história e, evidentemente, eu tinha resistido tanto a fazer política, porque, de certa forma, eu sentia a sedução e o apelo da política e, por isso, dizia tanto que para mim mesmo que não a queria fazer. Portanto, era um dilema assumido e agora estava a fazer, estava a trabalhar, estava a ter resultados, estava a aprovar relatórios, alguns dos quais são tema passados tantos anos, e, neste sentido, não se colocava a questão



Mas, eu tenho de pôr um limite a mim mesmo acerca de até quando vou ter este tipo de atividade e o limite que eu me lembrei foi esse, foi o de quando tivermos mais tempo de democracia do que tivemos de ditadura. Eu, filho do 25 de Abril, nascido ali um bocadinho antes do 25 de Abril, devo tanto ao 25 Abril, porque, na verdade, eu nunca teria estudado, eu nunca teria tido bolsas de estudo, eu nunca teria ido fazer o doutoramento lá fora, nunca teria ido para as universidades, ou para os arquivos e bibliotecas a que eu fui, e que são as coisas que eu mais gosto de fazer.


Eu venho de uma família, nós somos da primeira geração que chega, sequer, à universidade. Não havia dinheiro para essas coisas se não houvesse bolsas de estudo e, portanto, tudo isto, na minha cabeça, tornou-se, e no meu coração, também de certa forma, uma promessa consciente a mim mesmo. Okay, vamos lá devolver aquilo que o 25 de Abril me deu, à minha geração e a mim, individualmente, pelo qual eu sou grato, e quando tivermos mais dias de democracia do que tivemos de ditadura, posso voltar a fazer aquelas coisas que eu gosto. Eu também não faço um sacrifício enorme, quando estou a fazer política. Gosto de fazer política, mas, simplesmente, é muito mais extenuante do que fazer história.


Bem, de certa forma, o destino encarrega-se de nos provar como os nossos planos, às vezes, são um bocadinho ingénuos, porque eu não fazia ideia do que ia acontecer a seguir, nunca imaginei que iria, nem entrar em rutura com o Bloco, enquanto independente, porque há, certamente, muita gente que pensa que eu fui militante do Bloco e isso não é verdade. Fui eleito como independente e se não tivesse sido eleito como independente se calhar as coisas não teriam corrido daquela maneira. Ou seja, foi muito pela razão específica da defesa de um mandato independente, que tinha sido apresentado enquanto independente nas próprias eleições, que se deu a rotura como se deu, menos imaginava eu que iria fundar um partido, mas também, a seguir o facto de o partido tendo tido algum sucesso, ao ter tido representação parlamentar, fez com que eu, mais rapidamente, pudesse voltar a fazer as coisas de que eu gosto.


Eu não tenho mandato eleito desde 2014, não sou dirigente partidário desde 2015 e, portanto, antes daquilo que eu pensava regressei à minha vida, que era a minha vida anterior.



Já que o Rui estava a dizer que não é um esforço ter que sair de política, o que é que lhe dá mais gozo fazer? Como é que o Rui se definiria? Considera-se mais um Rui político, o Rui historiador, o Rui cronista, o Rui professor? O que é que lhe dá mesmo gozo fazer?




É muito mais o escritor e o historiador, não é só aquilo que me dá mais gozo, é aquilo a que eu atribuo, não sei se acontece com todos os historiadores, mas acho que muitos deles têm, por defeito profissional, esta mania de se projetar um bocadinho no futuro. E na verdade, um livro (hoje em dia as pessoas desvalorizam bastante os livros, até por causa de passarmos o tempo todo no twitter ou nas redes sociais), mas na verdade se há coisa que dura e que a gente deixa da nossa vida, que faz a diferença, são livros. Vocês vejam, de quantos políticos do século XIX é que falamos? De quantos deles é que podemos dizer que conhecemos alguma coisa? Alguns políticos portugueses do século XIX nós conhecemos o nome, porque são o nome de uma avenida... Okay, o Fontes Pereira de Melo, que é conhecido como uma espécie de Cavaco Silva do Século XIX, o que é injusto para Fontes Pereira de Melo, porque é um político que acho que tem mais que se lhe diga, do que o professor Cavaco Silva, com todo o respeito.



O Passos Manuel, que é um político essencial, só esteve no poder 9 meses, mas tudo o que ele criou, desde os liceus, aos conservatórios, à biblioteca nacional.... Quer dizer, é um mandato absolutamente extraordinário, mas se formos a pensar escritores e historiadores do século XIX, nós lembramo-nos do Eça de Queirós, do Camilo Castelo Branco, do Alexandre Herculano, do Júlio Dinis, muitos mais... Por isso, os livros duram mais. Portanto, não só me dá mais gozo, como eu acho que a longo prazo, escrever livros é uma coisa que, até moralmente, me puxa muito mais. Não fico nada preocupado se há uma eleição e eu não estou a fazer campanha, mas sinto-me preocupado se passa um ano e eu não estou a escrever. Pronto, isto é coisa comum às pessoas que desde pequenas têm este fascínio por escrever e, no meu caso, por escrever História, portanto é sem dúvida a coisa que mais puxa por mim.




Só que a Política tem uma coisa. A Política tem uma urgência que as outras coisas não têm.

A política tem uma coisa, que é altamente viciante e sedutora, que é haver um sentido de urgência. Um livro, e às vezes fazemos mal, a gente pode sempre adiar. Não se escreve este ano, escreve-se no próximo. Já certas coisas políticas, ou se fazem agora ou se perde o tempo. A nossa democracia já não é o que era. Por exemplo, neste momento há uma luta contra o nacional-populismo e contra os novos autoritarismos, que é uma coisa se calhar mais importante que qualquer outro combate político. Se aplicarmos a mesma ideia de “gostava de estudar alguma coisa, mas não estudo agora estudo daqui a dez anos”, isto é uma coisa que em política não funciona. E eu devia fazer qualquer coisa para ajudar a salvar a Democracia e os Direitos Fundamentais contra a ofensiva dos “Trumps”, dos “Bolsonaros”, e por aí fora.


“Não vou fazer agora, faço daqui a dez anos”. O próprio pensamento é absurdo. Daqui a dez anos pode já não haver Democracia para se salvar, portanto a política tem um sentido de urgência ao qual é muito difícil não responder.



Podemos contar com Rui Tavares a concorrer nas próximas primárias do LIVRE, nas Europeias, nas Legislativas…?


Não faço ideia. É uma questão dilemática para mim, ou seja é uma questão acerca da qual eu terei de me decidir e, se eu tivesse de me decidir por exemplo, implicaria quebrar essa promessa feita para mim mesmo, mas por outro lado também não porque a ideia dessa promessa que fiz a mim mesmo era basicamente uma maneira de eu dizer “Rui, não vás ser um daqueles políticos que entra na política e depois só faz política”.


Não tenho estado a fazer só política, até nos últimos anos tenho andado a fazer mais das outras coisas. Portanto, acho que posso estar de certa forma descansado em relação a mim mesmo, em relação a essa promessa, no sentido em que se a ideia era impedir-me de ter uma atividade exclusivamente política, felizmente tenho outras coisas. Agora, há uma série de outros elementos, de responsabilidade em relação ao próprio partido, em relação ao país e à Europa, aquela coisa que pode parecer banal mas que existe mesmo. Não sei, o que eu faço em relação a isso é impedir-me de estar o tempo todo a pensar em tais coisas. Quando houver primárias do LIVRE eu decidirei, primária a primária, porque, quer dizer, se as outras pessoas até que não são do LIVRE podem participar nas primárias, como é evidente também posso participar, mas a resposta curta é “não sei”.



Houve algum livro que o Rui tivesse lido e que tivesse feito aquele “clique” de “Eu sei que estudei História mas o que eu quero mesmo é escrever sobre”...?


Imensos.




Mas houve algum que se destacasse?


Há muitos. Há imensos. As minhas respostas já são longas então, se ficarmos aqui a falar de livros que me influenciaram, ficamos para sempre. Bem, por exemplo, um no qual penso muitas vezes é um livro quase de ficção científica, mas que não é de ficção científica até porque foi escrito antes de haver esse termo, chama-se ‘A guerra das salamandras’ e é de um autor chamado Karel Capek.


Aconselho vivamente. É um livro absolutamente fascinante, escrito por um checoslovaco, que está a ver que os nazis vão invadir o seu país e a denúncia que ele decide fazer é em forma de parábola. Basicamente o livro dele é sobre o aparecimento de uma espécie de salamandras extraordinariamente inteligentes que os humanos tentam escravizar e que depois se revelam mais inteligentes que os humanos e, mais tarde, acabam a repetir os erros dos humanos. É um livro extraordinariamente profético porque basicamente fala, ele morreu antes da Segunda Guerra Mundial, mas fala de coisas que aconteceram a seguir a ele morrer, e algumas delas absolutamente impressionantes.


Outro livro que me influenciou muito é um livro do Ítalo Calvino, chamado ‘O Barão Trepador’. É um livro absolutamente libertário, acerca de um filho de um Barão que se rebela contra a Aristocracia desde a sua infância, vai viver para cima das árvores e passa toda a sua vida em cima das árvores. E o Calvino era um escritor extraordinário porque conseguia manter essa premissa de base, porque uma pessoa acha “Bem isto dá um conto de duas páginas, ou de três, mas não num romance inteiro”. Ainda por cima passa-se numa época que eu gosto muito, que é o século XVIII, ele vive ali todo o século XVIII, e o princípio do XIX, em cima das árvores a ver todas as alterações na Europa e no Mundo, que ocorreram naquela altura. Absolutamente fascinante. E podíamos continuar por aí fora, mas estes dois são livros muito marcantes.



O Rui quando disse que gosta muito de dar aulas, e que gostava de dar mais horas de aulas, falou de um projeto de escola que tinha. Pode desenvolver isso?


Sim. A ideia do ‘Ulisses’. Existe uma coisa que eu fiz quando estava no Parlamento Europeu que é um documentário chamado “Ulisses: quebrar o feitiço da crise”. É um documentário de 74 minutos, foi feito por uma professora do Porto, a partir de uma ideia original minha e em que trabalharam as pessoas que também estavam no meu gabinete. Foi filmado em quatro países, Portugal, Espanha, Itália e Grécia. É um documentário, sobre propostas de ação para sair da crise, que eu chamava “Green New Deal para o Sul da Europa”, e de certa forma todos esses países têm uma relação com Ulisses porque, na verdade, os países chamados “PIGS” durante a crise eram estes. E há um episódio na Odisseia, no poema em que aparece pela primeira vez esse nosso herói Ulisses, no qual os marinheiros de Ulisses são transformados em porcos, não pela crise mas pela feiticeira que tem um nome quase parecido que é a Cirse. E o papel do Ulisses, que sempre nas suas aventuras é o herói que demonstra que há sempre saída de todas as situações, e a saída para dar de novo forma humana aos seus marinheiros que foram transformados em porcos é devolver-lhes a memória que tinham perdido e, com a memória vem, a nossa agência quanto humanos e a nossa dignidade.


Havia, portanto, este elemento fascinante que era dizer “Vocês chama-nos porcos, os “pigs” do Sul, que era evidentemente um termo desumanizante, então queiram saber que num poema da tradição mediterrânica, lá do Sul da Europa, nessa periferia que é nem mais nem menos onde nasceu a civilização europeia, num poema da Odisseia há um episódio em que os tais ‘porcos’ são transformados por Ulisses em humanos, usando a sua imaginação”.


O projeto ‘Ulisses’ era, então, uma proposta de New Deal para o Sul, com elementos sociais, económicos, etc. Acho que ainda hoje vale a pena ver o documentário. E no fim do documentário havia menção a uma ideia que eu ainda não concretizei, que é de formar uma coisa chamada “Instituto Ulisses”. Que, na verdade, provém de uma ideia ainda mais antiga que veio do meu fascínio por escolas livres. Em Nova Iorque foi fundada, no final do século XIX, princípio do século XX, uma escola chamada ‘New School’, que era uma cooperativa de professores que durante o período entre guerras foi a primeira a receber refugiados da Alemanha. A escola onde eu me doutorei, em França, é uma escola que durante a guerra foi recebida nos EUA por essa ‘New School’ e se transformou na Escola Livre de Outros Estudos.


Em São Paulo existe uma escola chamada Escola da Cidade, fundada por alguns amigos meus, que é principalmente de Arquitetura, Urbanismo, História e que funciona num modelo de uma enorme flexibilidade e o meu sonho sempre foi criar, basicamente, um tipo de escola nesse modelo da ‘New School’, do que a ‘New School’ era tradicionalmente, etc. E a isso eu chamo Instituto Ulisses porque a ideia era, não ficar por Lisboa, mas começar por Lisboa e o mito é que Lisboa foi fundada por Ulisses.


Portanto tudo se juntava. Esses fios todos pelos quais eu tinha tanto fascínio, ou da minha cidade, ou de ‘Ulisses’, do Mediterrâneo, das escolas. Tudo isso se juntava e continua a ser precisamente um projeto um bocadinho, até realmente, adiado. Têm acontecido coisas, há palestras, e conferências que se vão fazendo de vez em quando, mas como projeto continuado, permanente, de uma escola que existe e funciona sempre, tem sido adiado na minha vida.


Precisamente um dos meus projetos para este ano que agora começa, 2021, é finalmente dar uma chance à ideia do Instituto Ulisses e, portanto, meter-me nisso. Pensar “não podes continuar a sonhar e a pensar neste projeto, tens de falar nele, fazer algo para o concretizar”, e é plausível que essa ideia do Instituto Ulisses também seja uma enorme trabalheira. Ou seja, outra coisa que também me desvia de outras coisas que quero fazer e que a gente não sabe onde vão dar.


Vocês, que estão a fazer as perguntas certas, apanham-me num momento em que já não é um dilema, já é um trilema, porque tem três elementos. Mas, enfim, na verdade, todas estas coisas se vão conseguir combinar porque, na verdade, todos nós somos assim. Todos nós temos diversas facetas da nossa vida, o segredo é não deixar que uma dessas facetas monopolize as outras. Tentar manter as bolas no ar, de certa forma.


Entrevista por Alexandre Matos e Ana Francisca Gomes



Comments


bottom of page