Vera Marmelo: "não comecei a fotografar por gostar muito de fotografias, comecei pela música"
- Jornal Espectro
- 1 de dez. de 2020
- 33 min de leitura
Atualizado: 10 de dez. de 2020

Num concerto, bem lá à frente e sempre munida da sua câmara fotográfica - que é já uma extensão do seu braço. Ou então em estúdio. A verdade é que o sítio pouco importa: se há música, a Vera Marmelo há-de lá estar. O amor pela música ao vivo começou muito cedo e só depois veio o amor pela fotografia - a desculpa que arranjou para poder acompanhar os músicas da sua cidade. Formou-se em engenharia e é na área que continua a dedicar 8 horas do seu dia, mas faz da fotografia o seu sério hobbie pós-laboral. Numa rara hora livre da sua vida dupla, a Vera falou com o Espectro sobre a sua paixão que já dura há mais de 15 anos.
Já tínhamos em falado em começar esta entrevista em tom de brincadeira e perguntar-te se dormias - por causa de todos os concertos que costumas cobrir aí por Lisboa. Depois descobrimos que trabalhas efetivamente, durante 8 horas por dia, na área em que te formaste. Então a pergunta deixa de ser em tom de brincadeira: como é que consegues ter tempo para ti e gerir dois trabalhos?
Eu sou formada em engenharia e trabalho nisso desde 2007. Tenho duas vidas. O meu trabalho é diário: é entrares a uma hora certa e saíres a uma hora certa e picares o ponto. Portanto, não é a coisa mais fácil de gerir. O que acontece é que eu uso os meus dias de férias praticamente todos para trabalhar em festivais, para fazer coisas que não consigo marcar em pós-laboral. A sorte no meio disto tudo é que a maior parte dos concertos acontecem depois do meu horário de trabalho e eu consigo empurrar muita coisa para os fins de semana e depois há essa particularidade do dormir ou não dormir que é: uma coisa é o número de horas úteis em que tu estás fisicamente num espaço, só que depois daquilo acabar eu ainda tenho que editar imagens. Eu costumo dizer que fiquei muito rápida e muito ágil a editar e a escolher imagens porque quanto mais depressa eu fizesse isso, mais depressa eu ia para a cama e mais horas eu conseguia dormir (risos). Eu não durmo assim muito.
Agora mudou um bocadinho e acho que estas coisas fizeram-nos também ver no que é que andávamos a gastar o nosso tempo e estas prioridades de teres alguma saúde mental no meio das coisas é importante. E eu até tenho essa capacidade de conseguir funcionar a dormir cinco, seis horas e depois há uma noite em que só dormes quatro e depois vem o fim de semana e até consegues dormir um pouquinho mais e consegues aguentar. Não é para todos, nem toda a gente aguenta o dormir pouco. É uma gestão de agenda muito particular e que não é nada simples e que não é para toda a gente e que também às vezes requer alguma flexibilidade nos horários de saída do meu trabalho - do qual eu tenho essa facilidade. Mas eu abdico efetivamente do meu horário de vida pessoal em grande. Os 23 dias que tenho para férias são sempre muito precisos. Eu até ao ano passado usava 13 ou mais para trabalhar e o que começou por ser um hobbie - a cena da fotografia e dos festivais é uma grande festa - hoje em dia é um trabalho ainda.
Eu faço muita coisa ainda que quero, que vou por iniciativa, que não se consideram trabalho por não ser pago e aí mistura-se tudo. A tua vida social acaba por se misturar muito com o trabalho da fotografia, porque eu vou a espaços onde estão pessoas que eu acabo por conhecer, portanto há um momento em que conversas com elas e que estás ali com elas e que parece que estão ali para o mesmo que é para te distraíres, e a maior parte das pessoas com quem eu faço coisas em fotografia acabam também por ser pessoas ou são minhas amigas, ou se transformam em minha amigas. Então sempre é um ambiente mais descontraído do que o de escritório, que é o que eu tenho na engenharia, mas não deixa de ser um momento em que estás ali para fazer uma coisa e tens uma obrigação, e muda tudo quando é uma obrigação e uma responsabilidade e alguém está à espera do resultado a seguir. Eu também não sei, às vezes olho para a quantidade de coisas que faço e mesmo em tempo de pandemia, desde junho até início de outubro que foi quando eu tive as minhas ""férias de verão"" do meu trabalho normal, eu fiz 15 dias x 2 concertos na Gulbenkian, fiz o Festival Bons Sons, fiz o Festival Iminente, fiz a temporada da ZDB (Galeria Zé dos Bois) no S. Luís que foram mais quatro dias, voltei a ter concerta na Culturgest, foi assim muito intensivo e muito concentrado porque as coisas depois aconteceram todas a correr. E eu acho que olhei para trás e a pensar como é que foi possível, em modo pandemia, eu fazer dois festivais colados um ao outro sem ter um dia em que não tivesse que fotografar. Isso é muito impressionante.
São muitos anos e depois as coisas começam a acontecer e ou tu não podes dizer que não, ou não podes dizer que não e arranjas sempre mais um bocadinho de tempo e de espaço. É preciso uma motivação extraordinária, ou então realmente precisares do dinheiro para viver, porque tens esse lado também que agora é muito duro de eu te amigos que são exclusivamente fotógrafos em que mentalmente ninguém está muito criativo, ninguém tem muita vontade de fazer coisas em cima do joelho - que é o que toda a gente nos pede agora, porque está-se sempre à espera que se feche, que não se possa trabalhar mais. E eu ainda posso ir recusando as coisas que perceba que não tenho energia para fazer, que já dei tudo ali entre Junho e Outubro, mas os outros não estão nessa posição privilegiada e têm que trabalhar e ponto final. Portanto têm que estar a correr atrás do prejuízo e a antecipar um próximo prejuízo - que é dezembro e janeiro. Este ano também não me correu mal, também trabalhei muito, mas é muito fora exigirem de ti estas maratonas muito rápidas, depois teres estado muito tempo parado a tentar avaliar o que andaste a fazer.
Mas essa gestão dos dias de férias no Verão chega a ficar muito complicada com os festivais. Chegas a recusar festivais por já não teres mais dias de férias nesse ano, por exemplo?
Nunca aconteceu. Eu tiro sempre férias depois de Outubro, que é depois dos dois últimos festivais que eu costumo fazer - que é o Outfest e o Amplifest. O meu maior problema é por coincidências de datas, é ter festivais que batem em cima um dos outros. Por exemplo, logo no início do ano, o primeiro festival que eu faço em finais de Março/ inícios de abril, que é o Tremor que agora vai passar para Setembro e mal eles lançaram esta data eu só pensei "em cima de qual é que irá cair?". Mas por eu já ter o compromisso do Tremor, este ano tinha recusado o ID No Limits, que já tinham vindo ter comigo e mandaram e-mail no início logo do ano, mas ao qual eu tive logo que dizer que não, porque já está um compromisso feito com o Tremor. O que acontece é que eu já meio que escolhi os +/- 10 festivais que eu faço por ano que é entre o Tremor e o final de Outubro. Acontece ter que recusar trabalhos que se prolongam muito no tempo ou que não têm datas definidas por causa disto, mas acaba por ser útil ter ali um travão e teres que fazer uma escolha. E para essa escolha os critérios depois são inúmeros.
Achas que o facto de não fazeres da fotografia o teu sustento total influencia a tua postura em concertos? Pergunto até porque uma vez vi-te fotografar o O Salgado faz anos FEST! e, como o Maus Hábitos é um espaço muito pequeno para concertos, os fotógrafos estavam todos em cima uns dos outros, mas tu eras a única que se mantia plena no seu canto.
Há inúmeras situações em que eu estou lá a ganhar dinheiro e há outras ainda em que eu sou a fotógrafa do festival. A verdade é que, mesmo nessas situações, nós não vamos salvar o mundo a tirar fotografias de concertos, não estás ali em guerra a mostrar ao universo que alguma coisa de errado se está a passar na síria, é só um concerto. Eu já faço isto há imenso tempo e, de certa forma, parece que ficas mais tranquilo porque meio que antecipas as bandas todas que lá foram tocar que eu consegui fotografar. Aconteceu-me no Salgado eu não conseguir entrar em sítios, mas também acontece - e poderia ter acontecido no Salgado se eu quisesse - eu passar pela cozinha e pelas traseiras porque alguém já estava naquela antecipação de "ah, é a Vera e não sei quantas pessoas vão ver estas imagens porque ela tem montes de seguidores" ou eventualmente as pessoas gostam das minhas fotografias e prevêem que eu possa vir a fazer um bom trabalho enquanto lá estou. Não é que estejas acomodada, mas acho que já tenho a tranquilidade para perceber que não vale a pena estar sempre em cima, mais vale a pena estar atento ao que se está a passar do que estares non stop com uma câmara. Por exemplo: pagaste bilhete para entrar?
Não, pedi uma credencial.
Eu também não paguei bilhete, mas as pessoas que estão na fila da frente e que se querem divertir pagaram um bilhete. Portanto eu não vou estragar a experiência dessas pessoas, a meter-me à frente delas, ou a ser mal disposta, ou a empatar, ou a estar parada ali à espera que alguma coisa aconteça. Então eu faço sempre um bocadinho esse exercício, especialmente quando estamos em ambientes como aquele do Salgado que é uma mistura total, não há uma divisão entre pessoas, que é mais do que eu tirar foto incrível - que isso ali não existe, é só caos - eu quero garantir que ninguém me vai ficar a odiar e que se eu me portar bem vai na volta alguém até pega em mim e me protege quando eu estou a querer fotografar durante uns instantes ali. Eu acho que é só uma questão de teres experiência e não estares feita louca e eu não tenho aquela ambição da maior fotografia, eu só quero contar uma história com um conjunto de imagens que podem não ser as mais perfeitas.
Mas eu acho que isso tem também a ver com o facto de estar a fazer isto há mais de 15 anos, chegas a um ponto em que já perdes imensas imagens e vais tentar, no limite, estar mais ou menos fixe e tranquila nos sítios. Agora há ocasiões em festivais em que aquilo é uma loucura e está toda a gente a tentar engalfinhar-se nos pits e tudo mais e eu tento fazer a mesma coisa que tu me viste a fazer no Salgado que é não empatar, mas também não significa que em não vá lá no meu momento tentar tirar a fotografia do sítio que eu escolhi, mas tem que haver uma certa cordialidade entre os fotógrafos e, acima de tudo, tu não podes estragar a experiência da pessoa que pagou para ver aquilo e que se deu ao trabalho de ficar lá à frente a guardar o lugar e não és mais do que os outros porque tens câmara. Esta minha atitude mais tranquila e numa tentativa de me portar bem com o público já me valeu uma série de situações em que depois me deixam literalmente e perguntam "queres ficar aqui à minha frente?". E também tem a ver com o facto de agora sermos muitos, há muita gente a querer fotografar, há muita gente a querer mostrar que é bom muito rapidamente e é natural que isso depois resulte em momentos mais de cegueira. Tudo tem a ver com essa energia. Tu tens quantos anos? 20?
21 anos, sim.
Eu tenho 35. Começas a ficar mais velha e começas a ficar mais "deixa ver o que vai acontecer". Acima de tudo, eu encaro isto como sendo cultura e só quero passar a vibe daquilo que está acontecer, não vais salvar o mundo. Se tivesse ali em risco o ter a imagem que conta a história de alguma coisa que te pode ajudar a ser o melhor, aí eu corria. Agora, eu sei que aquela malta vai fazer crowdsurf mais três vezes durante o concerto e eu vou apanhar. (risos)
Mas isso que tu falas de, por já andares por cá há 15 anos, já saberes o que vai acontecer faz com que tu fiques já saturada de concertos, ou como és tu que escolhes, ainda és daquelas que fica até ao fim?
Não fico nada saturada e fico até ao fim a ver os concertos. E de cada vez que tenho que sair mais cedo porque ainda vou para outro sítio, ou estou num festival e tenho que andar a correr, até me sinto mal por não ver até ao fim. Não estou nada farta, de todo. Não estou nada farta da cena da música ao vivo. Este ano como não houve esta loucura dos festivais em que é a noite toda a correr de um lado para o outro a deitares-te às 5h00 da manhã, eu perguntei-me a mim própria como é que nós aguentávamos todos os fins de semana a ter esta vida de dorme pouco e passa a vida a correr de uma lado para o outro. Mas depois vejo as imagens. Ainda ontem saiu um vinil que até tenho aqui e posso-vos mostrar [mostra o vinil] que são só duas canções do concerto do Noiserv com os First Breath After Coma no Bons Sons. Tu vês as imagens disto e pensas "fogo, onde é que foi o Verão este ano?". E o Bons Sons é muito duro, é muito cansativo para quem está lá a fotografar e a partilhar as coisas no dia seguinte, mas também é um encontro de amigos constante. Eu não comecei a fotografar por gostar muito de fotografias, eu comecei por causa da música, então esse gosto ainda se mantém e não estou saturada. Óbvio que há dias em que estou um bocado mais cansada e me apetece ir para casa, mas isso também acontece a quem tem outro tipo de empregos.

É mesmo engraçado quando vamos aos mesmo concertos do que tu, porque, por exemplo quando saí do Salgado e então lembro-me de já estar com a minha amiga que lá foi comigo a desejarmos ver as tuas fotos. E o Alexandre e essa amiga nossa foram ao Bons Sons e nós estávamos os três a procurar pelas tuas fotos.
As do Salgado demoraram um bocado mais do que é normal, elas deveriam aparecer logo no dia seguinte só que esse fim de semana foi o da Angel Olsen aí no Porto também. Eu fui ao Salgado porque fui ao concerto da Angel e então eu lembro-me que cheguei a casa [no Barreiro] no domingo e editei tudo, mas como tinha tanta coisa para partilhar as do Salgado ficaram só para o início da semana. Mas o pessoal fica assim excitado com a cena de ver o que é que aconteceu? Isso é fixe! Eu também fico à espera de ver mais fotografias, mas regra geral tenho sempre que esperar imenso tempo para que as fotos dos outros saiam, então meio que desisto porque já aconteceu toda uma vida a seguir.
Não sei se é uma coisa comum a todos, nós é que temos um grupo de amigos em que costumamos ver tudo o que fazes. Como tu costumas estar sempre pelos lados de Lisboa, quando te vimos no Porto, ficamos logo atentos.
Eu até vou algumas vezes e acabo sempre por fotografar. Houve um fim de semana que fui aí fazer uma coisa por causa da Fuji e nessa noite tocavam os Deaf Kids lá nos Maus Hábitos e eu fui ver e estava lá a ligaram-em para ir fazer o concerto do Manel Cruz na Casa da Música e então fui trabalhar no dia a seguir. Aí [no Porto] faço o Amplifest e tento sempre ir a concertos por aí. Mas eu compreendo que seja da vossa curiosidade perceber como é que eu fotografo nas mesmas salas em que vocês costumam estar. É o mesmo do que quando aparecem fotógrafos novos, por exemplo na ZDB, que é dos sítios onde eu fotografo mais, também eu fico curiosa para ver o que é que cada um consegue fazer por lá. Portanto, eu comporto-me como vocês.
Tu fotografas concertos pelo gosto pela música, como tu própria disseste. Mas nunca te interessaste por fotografia de outro estilo? Documental, por exemplo.
Se me disseres "agora vais fotografar outra coisa qualquer, como pessoas, ou um espaço, ou vais fazer uma viagem por aqui e por ali" ... fotografar é extraordinariamente natural noutros universos. Agora para me dedicar a essas outras coisa com cabeça, tronco e membros, não me sobra muito tempo e acho que depois ficas tão envolvido num universo que é muito difícil roubares tempo a essa tua dedicação para ires fotografar outras coisas. Tal como começamos por falar nesta conversa, a minha formação foi em engenharia, não foi em fotografia, portanto todas aquelas premissas da malta que estuda fotografia de construir um projeto, andares anos e anos a evoluir a construir um grupo de imagens para depois editares um livro ou fazer uma exposição é um exercício para o qual eu nunca fui treinada e que até hoje não chamou muito por mim, mas não deixo de me sentir capaz de fotografar noutro tipo de universos e ambientes. Vai sempre é estar tudo muito agarrado a uma estética que está muito agarrada à minha cabeça, a maneira como fotografo é muito parecida em todo lado, ou aquilo que me chama mais atenção para fazer um retrato. Alinho a isso uma grande falta de tempo, mas também nunca pensei na fotografia como um meio para outra coisa que não estar a fazer arquivo de momentos, de festivais, de concertos, de momentos de gravação. Este são o tipo de coisas que documento. Depois podes brincar com o teu próprio arquivo e até podes construir esse tipo de projetos que tu encaras mais como fotografia de artista, conceptual. Eu ando agarrada há muitos anos às mesmas pessoas, porque há gente que eu fotografo desde o início e continuo, ainda hoje em dia, a acompanhar e portanto isso também pode ser o meu projeto documental: a vida toda de Luís Nunes, que já foi o Walter Benjamin e agora é Benjamim; ou a vida toda do Noiserv que eu fotografo desde os tempos em que estávamos os dois a estudar no técnico em 2003. Pronto, o meu projeto documental é a vida do Noiserv desde 2003.
Como estás sempre a fotografar coisas dentro da mesma área, sentes que te tens que te estar sempre a inovar? Não tens medo de sem querer estares a repetir o mesmo tipo de foto?
Eu fotografo géneros musicais bué diferentes. Eu começo a frequentar sítios com outros géneros musicais exatamente nessa procura de estéticas que sejam diferentes. É completamente diferente tu estares a fotografar guitarristas puro e duro, ou de repente estares a fotografar uma banda de metal que tem um ambiente completamente diferente. Eu aborreço-me muito a ver fotografias de concertos, então o meu único objetivo é continuar a olhar para as minhas e a não me sentir aborrecida e isso faz com que elas tenham uma grande diferença desde os últimos anos. Eu em 2016 andei a fazer um apanhado todo do trabalho dos últimos dez anos para perceber se conseguia montar um site e as imagens são mesmo diferentes. O tipo de coisas que eu procuro em palco começaram a ser outras, a edição de cor é cada vez mais diferente, eu antes fotografava muito mais na horizontal e de repente a máquina vira ao contrário. Portanto eu só procuro tentar, no mínimo, fazer com que as pessoas percebam o que se passava lá num todo, ter uma perspectiva da sala - mas isso não implica ter uma fotografia que apanhe o palco todo e depois ter uma fotografia que parte a parte da frente do público - não vou fazer isso, eu faço isso. Eu só não quero me aborrecer, não estou à procura de uma estética ou de ser super inovadora. É mesmo só olhar para as imagens e pensar que são fotografias interessantes e que me mostram alguma coisa do que se passou e que vai além daquela coisa chata que é fotografar concertos só por fotografar. Tens muita gente que é muito boa a fazer a cena "chata", mas muito informativa, em que tu percebes exatamente o que lá se passou, e depois tens muita gente que faz coisa muito fora e que se calhar não servem todas as caixinhas, mas que são mais entusiasmantes, ou pelo menos mais interessantes, mais wow.
Eu só não me quero aborrecer, não estou à procura de mais nada. Só quero olhar para as imagens quando chego a casa e as meto no computador para editar e pensar que estão aqui um conjunto de imagens de que eu me orgulho a partilhar. E às vezes tens imagens de que eu gosto muito que foram feitas em sessões de 15 minutos e às vezes tens um festival inteiro em que há imagens que também são fixes e é o trabalho de cinco dias a andar de um lado para o outro. Eu não ando à procura de nada, não tenho uma agenda onde planeio inovar este ano. É uma coisa que é natural, o que te cativa a olhar é aquilo que tu vais procurar e fotografar, mas é preciso estares numa cena muito tua e muito independente e não estares constantemente agarrada às referências que tens. Isso a mim nem me passa pela cabeça porque nunca fiz essa procura, acho que é a grande diferença de eu ter começado a fotografar concertos numa altura em que não havia internet para tu encontrares outras plataformas onde estas fotografias estão e nem havia tanta gente a fotografar. Portanto não havia um ponto de comparação com ninguém. Não tendo eu com quem me comprar, para já não ambicionava fazer igual a ninguém e depois não sentia essa pressão de ser melhor ou de ser pior e isso manteve-se.
Neste últimos anos, à parte de alguns momentos em que pensas "aquela pessoa é muito melhor do que eu ou faz coisas que a mim me entusiasmam mais" eu tenho conseguido manter-me naquela minha caixinha própria de estar a fazer as coisas com uma intenção que nada tem a ver com a comparação do meu trabalho com o de outra pessoa. Acho que me desviei um bocado da tua pergunta, mas é isso: não estou à procura de estética, nem de mudar.
Sempre que vemos fotos tuas, conseguimos imediatamente identificar que são tuas, porque têm um cunho muito forte. Tens alguma técnica de captura ou edição que seja muito diferente de outros fotógrafos? Até deve ser mais de edição porque as tuas cores são completamente diferentes.
Já viste o trabalho de uma rapariga chamada Natacha Cabral? A "Nash Does Work"? A Natcha sim, tem cores que mais ninguém tem, ela é a mega boss das cores, é a "queen of color", como a própria se intitula. Mas não, não há nada. Nem sequer sei usar o Lightroom, meto as fotos no cameraroll do Photoshop e depois aplico uns filtros iniciais que são filtras do VSCO que toda a gente tem que estão a copiar os rolos Kodak. Eu começo por um desses e depois ando ali a brincar, eu nem sequer sei editar bem. O meu namorado é mega cromo em pós-produção e ele diz-me que parece que estou só a brincar com as barrinhas à toa.
Eu acho impossível que sejam um filtro do VSCO, eu mato lá as minhas fotos e elas não ficam assim (risos).
Mas eu estou-te a dizer que é, até posso partilhar o ecrã contigo neste momento e mostrar-te como é que eu faço (risos). É tão simples quanto isso, mesmo. Depois a grande questão é que as tuas imagens já têm que sair da câmara quase finalizadas. É óbvio que depois tu puxas os cor-de-rosas e aquilo fica super brilhante e contrastante. Pode ter a ver com as câmaras que eu uso, mas mais do que isso tem a ver com as lentes que uso. Eu só uso lentes fixas, tenho uma 80mm, uma 50mm e uma 35mm e que são muito luminosas e depois quando a malta pergunta como consigo tanta luz eu digo que tive que investir 900€ numa lente e depois tenho uma máquina de 1500€ enquanto que a malta se calhar ainda não pode comprar coisas tão caras por estar a começar e é natural. Mas a lente que eu usei durante 10 anos antes de mudar para a Fuji custou-me 180€ era uma 50mm 1.8.
Eu ando também com uma 50 da Canon.
E eu tenho sempre aquilo com uma abertura no máximo e acabou.
Nós os dois por acaso costumamos andar com aquelas lentes fixas pequeninas para todo o lado e depois é um estouro de luz.
E não é só isso. Se tu tiras a fotografia com essa lente e depois tiras com outra mas usando o mesmo zoom, quando comparas a definição de uma imagem e da outra, não tem absolutamente nada a ver. A luz toda vem do material que eu escolho utilizar, depois há a sorte de a câmara que eu tenho ter um ISO muito elevado e ainda mais luz eu consigo ter sem estragar o ficheiro de uma forma absurda. As cores não é nada de especial, são é muitos anos a editar e repara eu acabei de te confessar no início que eu como edito tudo à noite antes de me deitar, é à bruta, é mesmo a despachar. Estas fotografias dos festivais então que eram num portátil que já tinha sido recondicionado umas 10 vezes, aquilo morria, eu deixava as fotografias a exportar enquanto me ia deitar, como dormia só duas horas voltava e ainda não estava acabado. Também não são os computadores, ou seja lá o que for.
Quando começas a fotografar bandas e concertos no Barreiro, tinhas qualquer tipo de conhecimento fotográfico ou foi algo 100% chegar lá e experimentar?
Eu estive agora este fim-de-semana passado de volta de tralha que tenho, tipo agendas antigas, cadernos e não sei quê. E então encontrei que foi em outubro de 2003 que fui fazer o primeiro curso de fotografia, já no sítio onde estudei engenharia. E aí aprendi a revelar, e a ampliar fotografias, e a saber usar uma máquina, e pouco mais. Mas antes disso, eu já fotografava os concertos com uma máquina digital pequenina, que tinha dois megapixels. O vosso telefone tem para aí 10 ou 20 ou uma coisa assim qualquer. Nessa altura, em que ainda andei com essa câmara e com algumas de filme, mas de "point and shoot" bué básicas, e não fazia a menor ideia do que estava a fazer. Não sabia mesmo, não fazia a menor ideia. Pronto, olha, aquilo saía, tu passavas a fotografia para o computador, e já está. E depois mandavas para o pessoal.
Não havia cá edições, programas para editar, nem sequer havia computadores decentes para o fazer, e depois a partir então de 2003, eu comprei uma câmara por causa desse curso, de filme, e entre 2003 e 2007, eu só usava filme. Então aí comecei a tornar-me um bocadinho mais independente, e à medida que precisava de alguma coisa ia aprendendo aos bocadinhos, porque só me ensinaram a revelar filme e a ampliar. Depois quando tive que começar a digitalizar, fui eu que pensei "ok, então como é que isto se faz". Depois como tive que começar a editar, porque a mim ensinaram-me a editar numa mesa de luz quando estava a fazer uma fotografia em papel, não me ensinaram a editar num computador, então [tive que pensar] "como é que isto se faz" e "que programas é que há" e tudo mais.
A maneira como eu fotografava e como compunha imagens, eu aprendi o básico naquele curso, os três quartos, ah e tal, e os horizontes e as imagens verticais e as imagens horizontais para as paisagens. Mas foi tudo assim por apalpação. Nunca fiz aqueles cursos tipo três anos, não sei onde, de fotografia, ou cursos de fotografia de espetáculo, ou quer que seja, nada disso. E hoje em dia o pessoal tem a vida ainda mais facilitada porque no YouTube aprendes a fazer tudo. Para terem ideia, foi agora na quarentena que fiz um curso do Moma, o museu em Nova Iorque. Tinham um curso gratuito de história da fotografia, que gravita muito à volta da coleção deles, mas que é muito interessante. E então eu fiz esse curso agora.
Mas também soube que a coordenadora do curso da ETIC [Escola de Tecnologias, Inovação e Criação], com quem eu vou falando todos os anos porque eu dou uma aula lá na ETIC, um módulozinho de 4 horas em que vou lá falar sobre as coisas que faço, na altura em que ela me contactou este ano para dar a aula, eu mandei-lhe o link para ela partilhar com os alunos, e ela diz-me "olha, eu estou a fazer o curso também" (risos).
Portanto, eu continuo a assistir a cursos, principalmente de coisas teóricas, agora estou a assistir a um curso online, mas é um atelier que é aqui em Lisboa, e eu já assisti um curso presencial no atelier com eles, sobre livros de fotografia. Na quarentena assisti a um sobre fotografia contemporânea, e agora estou a assistir a um que é só sobre fotografia feita por mulheres.
Ou seja, eu acho que agora estou mais empenhada a aprender (risos) e a pensar sobre a fotografia do que necessariamente sobre o ter tido essas bases de como é se faz, como é que se não faz, essa parte mais técnica. À medida que ia precisando, eu ia procurando. E continuo muito longe de ser uma geek de tecnologia ou de máquinas ou de seja lá o que for. Foi sempre assim um bocado por ocupação, não tinha bases nenhumas quando comecei, absolutamente nenhumas (risos).
Tu costumas falar do bom de continuares em engenharia é que te permite estares financeiramente estável e depois só ires fotografar aquilo que queres, ao contrário de alguns fotógrafos que estão a fazer disso a vida e que acabam por ter que aceitar trabalhos com os quais não se identificam muito. Tu achas que será possível um dia tu dedicares-te financeiramente a 100% à fotografia que tu gostas de fazer, tipo concertos, ou nem sequer gostavas que isso acontecesse?
Dedicar-me única e exclusivamente, ou seja, o que é que é esta história de nós conseguirmos depender única e exclusivamente a uma atividade só? É tu olhares para o dinheiro que recebeste durante um ano a fazer isso, dividires pelos 12 meses e tentares perceber se isso é o suficiente para viveres. Portanto, se calhar, só a fazer aquilo que queria fazer, nos últimos dois anos eu conseguia ser só fotógrafa já. Mas a verdade é que eu sempre fui assim. Quando o meu curso no Técnico de engenharia arrancou, foi quando fui fazer o curso de fotografia. Durante o curso foi quando comecei a conhecer as pessoas com quem comecei a fotografar. Quando o curso terminou, eu entreguei a minha tese de mestrado em Agosto de 2007, e comecei a trabalhar na primeira semana de Setembro de 2007 numa empresa. E foi depois de estar um mês a trabalhar nessa empresa que comprei a minha máquina digital, a primeira que tive. E durante o tempo todo em que tenho estado a trabalhar em engenharia, lado a lado, o meu trabalho de fotografia vem crescendo. Se eu não tivesse durante os últimos, imagina, 10 anos, o meu trabalho de engenharia a acontecer, era impossível ser só fotógrafa de concertos.
Ou seja, é quase como tu teres um mecenas de ti próprio. Tipo os teus pais são os teus mecenas enquanto estás a estudar, e assumem que a partir do momento em que terminas o curso vais ter que começar a sustentar-te. E tu tens duas hipóteses: ou tens muita sorte e és genial e num primeiro ano só fazes logo aquilo que tu queres fazer para a tua vida, ou então tens que andar uma série de anos a acumular trabalhos que não são bem aquilo que tu queres fazer. E demoras bué tempo a lá chegar. Eu decidi ser a mecenas de mim própria. Porque tive essa hipótese, porque tive um trajeto de vida que me levou a fazer uma série de escolhas que nada têm a ver com aquilo que a minha vida se transformou. Se calhar porque o meu gosto pela fotografia e este lado mais criativo e artístico surge depois de 17 anos a estudar coisas relacionadas com as ciências exatas.
E depois chegas a um ponto em que já estás meia habituada a esta cena. E eu não sei se seria mais feliz a depender só do meu trabalho de fotografia. Não sei se seria se calhar tão organizada e com uma rotina tão fixe como a que tenho. Mas sei que moramos num país onde era muito complicado trabalhar com os músicos que gosto, ou não ter que ceder a fazer outras coisas, que vai na volta eu ia fazer e curtir à mesma. Mas este tempo de quarentena, em que a maior parte das pessoas que conheço que só se dedicam à fotografia e ao vídeo, que são freelancers acima de tudo, fez-me perceber uma coisa: para tu decidires ser freelancer numa área destas, tens que ter assim uma preparação e uma almofada monetária generosa para que depois não comeces a panicar. Porque ser freelancer significa também teres que lidar tu com clientes, com falta de dinheiro, com uma série de coisas que não são só a magia de ser fotógrafo. E se calhar o facto de eu não ter que obsessivamente andar atrás de um pagamento de um cliente que só me paga a 60 dias mas que eu tenho que pagar a conta de não sei o quê naquela semana, faz com que eu consiga continuar a ser muito honesta com o meu trabalho, né? E acima de tudo, sempre que alguma coisa não me cai bem, não aceitar esse trabalho. Ou então se calhar é só falta de coragem, ou se calhar até gosto do meu trabalho em engenharia, ou então se calhar não me consigo desassociar da imagem da pessoa que andei a construir durante cinco anos a fazer um curso de engenharia e decidir que afinal sou outra pessoa. Então eu vou deixando andar, e estou a deixar andar desde 2007.
Agora estavas a falar disso, que tens a liberdade de poder rejeitar trabalhos, tu tens algum critério para trabalhar com certos músicos, por exemplo, se não gostares da música?
Raramente vem ter comigo pessoal de quem eu não gosto de todo da música. Já recusei de pessoas muito conhecidas, por achar que era um bad fit, por achar claramente que o nome aparece em muitos sítios e então eles pensaram "olha, vamos pedir orçamento a esta pessoa" só porque sim. Quando há um agente ou um promotor pelo meio, tu percebes que não vieram só ter contigo, foram ter com mais uma série de pessoas. Os critérios são simples: o tempo, se tenho tempo para fazer aquilo que me pedem, e a vontade, se estou com energia ou não estou com energia para fazer a coisa.
Infelizmente agora durante a quarentena, mesmo por estar a começar a ficar bué ansiosa e a panicar um bocado com isto tudo, aceitei e depois tive que recusar dois trabalhos com pessoas que eu admiro muito. Só que não estava a conseguir lidar com a pressão da cena toda. E isso também acontece, isto não é só entusiasmante. Tens que lidar com pessoas, tens qeu expor ideias, tens que chegar lá e fazer um trabalho fixe, e às vezes não dá, não consegues. Porque estás cansado, porque estás bué ansioso, porque covid, porque o mundo vai acabar, porque estás preocupado com a tua família.
Portanto, os critérios são assim meio no momento. Mas regra geral começa por ser uma questão de tempo, e também de eu me sentir ou não confortável a fazer certo tipo de trabalhos. Imagina que me pedem: "não, nós queremos uma sessão fotográfica num estúdio, uma cena super clean, super certinha". Eu não sei fazer isso, meu. Quer dizer, eu posso chegar lá e fazer, mas isso não é aquilo em que eu sou boa, portanto não vale a pena vires ter comigo. Sempre que eu sinto que é um mau casting, eu, regra geral, dou para trás também.
Qual é que foi o momento do teu percurso em que percebeste "ok, estou a gostar mesmo disto, estou a gostar daquilo que estou a fazer, quero fazer mais", houve assim algum momento?
Não, isso não acontece na vida de ninguém (risos). Não, nunca tive assim um parar e pensar "fogo, isto está mesmo fixe, eu sou mesmo buéda boss a fazer isto", nunca, nem pensar. A maior do tempo não tens tempo para pensar em nada. Não sei, vocês têm muito tempo livre para pararem, observarem à vossa volta o mundo a acontecer e encaixarem na vossa lista mental toda as coisas maravilhosas que têm vindo a acontecer até agora? Pá, claro que não. Isso nunca aconteceu. Nunca tive esse momento. Eu tinha uma rotina, que agora abandonei um bocado e estou a obrigar-me agora no início do mês a voltar a isso, que é: no final de cada mês eu revia todas as fotografia que fazia, depois selecionava umas quantas e depois metia no site, numa ceninha chamada "Monthly", numa espécie de best-off do que fiz naquele mês. E aí caí-me aquele ficha do "fogo, eu vi e fiz muitas coisas", e estamos a falar de um mês.
Agora imagina, quando chega o final do ano, eu no final do ano, regra geral, também por falta de tempo, uma cena que eu curto de fazer é escolher um concerto por mês, o concerto que eu mais gostei de ver/fotografar naquele mês. E nesse momento a única coisa que me cai sempre é a quantidade de coisas que vi, a quantidade de pessoas com quem estás para veres aquilo tudo, a quantidade de música que está a acontecer no país para eu ter acompanhado aquilo tudo. E isso são só momentos de "fogo, isto está intenso". 2020 não vai ser bem assim (risos), mas ainda assim há muitas memórias, há muita coisa que foi vista e feita. Mas não, não tens aquele momento do "ahhhhhh", não. Pelo menos a mim não aconteceu. Não acordo de manhã a pensar, o que é que eu vou conquistar hoje, de todo.
Já tinhas dito que és amiga do Benjamim e do Noiserv. Mas como é que uma pessoa que vai fotografar um músico, e que não passa com ele um dia inteiro, porque tens o trabalho em engenharia, como é que consegues ficar tão próxima das pessoas? Por exemplo, estou a falar do caso da Angel Olsen. Como é que tu em tão pouco tempo consegues fazer uma ligação tão grande com as pessoas que vais fotografar? Tens muito aquela cena de falares muito com elas para ficarem à vontade antes de começares a apontar a câmara?
Não, não. Pá, isto é uma questão de empatia. A Angel, na primeira vez que ela veio cá, eu tive durante a tarde no concerto, não lhe dirigi a palavra sequer. No segundo dia ela já tinha visto as fotografia e então sabia quem eu era, e ela fez um segundo concerto na ZDB, e eu perguntei-lhe se podia fazer uns retratos, e durante o momento em que fizemos os retratos, que durou tipo 10 minutos no terraço da ZDB, nós não falamos. Depois ela regressa a Portugal e então é tipo "ah ya, estamos juntas outra vez". Pá, é uma questão de empatia, são muitos anos a lidar com tours longas e depois chegam a um sítio, e é um equilíbrio entre não ser chato, fazeres o que estás lá para fazer, eventualmente as pessoas gostam das fotografia que fazes, e isso é uma abertura de portas imediata.
Ou seja, a partir do momento em que eles olham para as imagens e percebem "ya, fixe, 'tá-se bem", a partir daí é mais fácil eles começarem a conversar imediatamente contigo. Mas a Angel veio cá já muita vez e eu estou sempre com ela, mas isto não é só tipo a Vera Marmelo. A pessoa que trouxe a Angel tocar cá a solo, é uma pessoa que é um dos meus melhores amigos, que é o programador do ZDB, o Sérgio, é ele que me abre essa porta. E o Sérgio abre-me essa porta porque, para além de nós sermos amigos, eu fotografo ao lado dele desde 2007, ou seja, nós temos uma relação pessoal que lhe dá a segurança de saber que eu me vou portar bem com a estrela Angel Olsen (risos). E a verdade é que estas pessoas não são inatingíveis, não é?
Eu já tinha estado com o Devendra [Banhart] uma vez, e agora fui meio que contratada para fazer os dois concertos dele cá na capital. E eu estive com eles também durante a tarde. E tipo, é um gajo normal. E a única coisa que tens que fazer é não ser muito impositivo, porque aquelas pessoas estão em tour, andam numa carrinha juntas há semanas, e portanto a última coisa que eles querem é alguém chato. Tu sabes que há uma dinâmica de grupo, portanto sabes que tens que entrar quando é suposto e sair quando é suposto. Pá, é uma questão de tacto. É o mesmo que tu desenvolveres uma relação de amizade com um amigo com quem não estás todos os dias, não é? E depois é a questão de eles se sentirem mais recebidos num país, gostarem de uma cidade, serem recebidos sempre pelas mesmas pessoas e isso cria uma familiaridade muito grande. Portanto sabem que vão lá e encontram uma família.
Pronto, é um facto que a Angel virou uma amiga pessoal. Tipo, não é só a amiga dos gigs. Mas eu não passo a semana a trocar mensagens com a Angel Olsen (risos). Não é assim que funciona. Somos amigas quando ela vem a Portugal, percebes? Pronto é isso. Não há receita. Eu não me esforço para ser amiga de não sei quem. Só que são tantos anos em que estás habituada a receber músicos que andam em tours longas que tu já sabes que, no mínimo, eles só querem estar num sítio em que é confortável. E se tu podes, durante esse dia, ser mais uma pessoa que os recebe, e que os tenta tratar bem, é meio caminho andado para ter essa relação. Tens, por exemplo, programadores de música que convidam, sei lá, um gajo qualquer, olha o Devendra veio cá tocar, já não me lembro quem foi o agente ou o intermediário que o contratou, e essa malta nem sequer apareceu durante a tarde no teste de som deles. Porque assume que isso não é a missão deles, o estar ali para receber e não sei quê.
Eu faço parte de uma escola e de um de grupo de pessoas que, quando contrata ou programa um músico para vir tocar à sua sala ou ao teatro ou ao seu festival, tem esta premissa de o receber, e de o acompanhar. E isso faz com que estas relações surjam. E depois é teres personalidades que batem certo, ou não batem certo. Sei lá, não dá para explicar. É só seres boa pessoa, seres fixe, não é? E seres boa companhia. Agora pá, relações tipo o David [o Noiserv], eu conheci o David na escola, antes sequer de saber que ele fazia música. Pá, deu sorte, né? O gajo até ficou meio popular (risos). É um bocado por aí. Não sei. A maior parte do pessoal acho que observa, olha para o meu feed e começa a ver "Tchii, Angel Olsen e Thurston Moore" e as bandas todas e os festivais todos. E como nós só temos a memória curta, a malta só se lembra das coisas desde que o Instagram apareceu. E esquece-se por completo que em 2003, quase há 20 anos atrás, um amigo meu da faculdade é dos músicos que continuo a fotografar até hoje.
Portanto, este espaço de tempo na verdade, é que é quase a vossa vida toda, é o tempo em que ando sempre a fazer isto. Naturalmente, vocês daqui a 10 anos, quando forem entrevistar outras pessoas, vão conseguir muito rapidamente estabelecer uma relação muito mais de empatia e de facilidade de comunicação, porque já têm mais 10 anos a lidar com pessoas na vossa vida, e a terem uma vida social e tudo mais. Acho que foi o Marcelo Camelo que disse isto uma vez numa resposta a uma entrevista, quando lhe perguntam quanto tempo demora a escrever uma canção, e o gajo, na altura tinha 35 anos, e responde 35 anos. São tipo 5 minutos de inspiração mas são 35 anos. Ou seja, não é só os momentos que passo com a Angel, são todos os outros em que eu me formei enquanto pessoa, e que tenho uma personalidade x ou y, e que depois bate certo com a personalidade x ou y dela. Pronto, é isso.
Eu queria fazer-te uma pergunta sobre os artistas que segues há muito tempo. Porque segues o Noiserv desde o início, o Alex D'Alva também desde o início, o Benjamim. E parece que agora são das pessoas mais conhecidas na música portuguesa. Há alguma pessoa que segues desde o início que não vingou como estas, e que tenhas ficado com pena? É que a impressão que dá é que toda a gente que fotografas acaba por ter sucesso.
Oh pá, sei lá. Então olha, vamos olhar para o blog, vamos fazer esse exercício [abre o blog dela no computador]. O blog existe desde 2006. A primeira entrada é do OUT.FEST, de 2006, e eu continuo a fotografar o festival até hoje. Depois a primeira entrada de janeiro de 2007 é do Tiago Sousa, que eu continuo a fotografar até hoje, e que vai tocar agora no Lux pelo TBA, e o Tiago, pá, não é popular mas continua a fazer a música dele, e monetariamente ele vive da sua música e das aulas de música que dá, de piano, e teve duas páginas no Ípsilon da semana passada, portanto não está mau. Em fevereiro está Norberto Lobo e a Rita Braga. Que continuam a tocar muito, e dentro dos seus universos são populares. Depois está o Alter Benjamin e o [B] Fachada em março de 2007. Sim, também [continuam a tocar]. Goodbye to lose era uma banda do Tiago Sousa com o Benjamim, desapareceu a banda, mas eles continuam.
Depois é novamente o OUT.FEST de 2007. Depois está aqui um rapaz que é o Manel Gião, que na verdade é o Cláudio dos Pista, e os Pista continuam, e eu continuo a fotografar o Cláudio, e ele já fotografo desde 2002.
Pá, não temos encontrado ninguém que tenha ficado pelo caminho até agora. (Continua a enumerar artistas).
Eh pá, se calhar tive sempre sorte.
Porque é essa a impressão que dá, todas as pessoas que fotografas tiveram boas carreiras.
Pá, eu numa altura estive muito ligada à cena da Flor Caveira. E alguns desses desapareceram. Mas esses desapareceram porque foram ser pais e o caraças. Ou seja, isto para eles era just to have fun.
Pá, pelo menos entre 2006 e 2007 ninguém ficou [para trás]. Está aqui o João Coração, que, pronto, eclipsou-se um bocado. Samuel Úria! A primeira vez que fotografei o Samuel foi em novembro de 2008.
Ah, nós vimos uma fotos tuas muito antigas do Samuel Úria e nem parece que é a mesma pessoa. Nem tem estas patilhas nem nada. E não parece nada. Dá mesmo aquele sensação que estás há muito tempo com eles.
Esta é de 2008 [manda-nos um link da entrada do blog], que é o Samuel com o Fachada. Isto era quando fotografava só com filme. O Fachada tinha muito cabelo (rimo-nos todos). Ele era assim [manda-nos outro link]. Esta foi uma das fotografia que tirei ao Bernardo para aí em 2009. Mas as pessoas envelhecem, né?
Pá, não me consigo lembrar de ninguém que tenha sido um flop. Mas é uma boa questão. Vou continuar a explorar o blog nessa premissa do "Quem é que se deu mal depois de te ser sido fotografado por mim" (risos).
Só assim mesmo para terminar, há alguém assim uma pessoa que tu gostes particularmente de trabalhar, pela tua personalidade se dar bem com o método de trabalho dessa pessoa? Se escolhesses só uma pessoa para trabalhares só com uma pessoa?
Mas só para fotografar?
Sim, sim!
Só fotografar essa pessoa? Sempre? Eh pá... Não faço ideia. Tipo assim tours loucas para curtir bué?
Ou estares só metida em estúdio.
Então olha, eu gosto dos meninos das canções e não sei quê. Mas uma pessoas aqui do Barreiro por causa da música, mas que eu já via porque o primeiro festival que eu fui na vida foi um chamado Barreiro Rocks, em 2002. E a pessoa que faz esse festival acontecer deixou de ser um tipo que eu olhava quando saía à noite aqui no Barreiro e pensava "fogo, este gajo é mesmo fixe", para se transformar num dos meus melhores amigos. E então eu acho que tinha que o escolher a ele. Na verdade ele era o Nick Nicotine, que tinha a Nicotine's Orchestra e uma banda chamada Act Ups. E hoje em dia tem um projeto em português chamado Suave. Portanto, era ele. Era o Nick Suave. A pessoa com quem eu ficaria eternamente. Com ele e com as bandas todas em que ele toca. Porque depois ele toca bateria numa banda que eu acho que é uma das melhores bandas de garage rock ao vivo em Portugal, e que tem claramente a melhor front-woman em Portugal, que são os The Dirty Coal Train, que estavam lá no Salgado. A Bea, para mim, é tipo, não há em Portugal. O baterista da banda nessa noite não era o Nick. Mas o Nick é baterista dessa banda também, e, pronto, tem assim mil projetos a solo. E é um dos meus melhores amigos. Portanto, se é para passar tempo eterno é com ele. Ainda por cima agora foi pai e ia estar a tempo inteiro com a bebé dele (risos).
É isso. Sabes, acima de tudo, eu acho que o que faz com que isto não se transforme em algo chato e doloroso é o facto de eu estar constantemente a trabalhar com amigos. Um dos últimos grandes concertos que fiz este ano foi agora o David, o Noiserv, a apresentar o disco novo dele, e cá em Lisboa foi no Tivoli. Mais do que estar lá para tirar fotografias e recordações e não sei o quê, eu estava literalmente naquela onda de... eu estava muito orgulhosa do sítio onde ele chegou, né? Quando vi finalmente as luzes todas que eles fizeram, e acho que são ao todo 10 câmaras como tens nos centros comerciais, de vigilância, ele tem 10 dessas à volta dele, e depois isso está a ser projetado na parede. Ou seja, tu estás a vê-lo a tocar, ele está dentro dum género de cubo feito com LED's, e depois está a ser projetado na parede, e tu consegues ver as mãos dele, os pés, por cima, enfim, tudo. Estás longe, mas consegues perceber tudo aquilo em que ele está a tocar. Pá, e eles conseguiram levar aquilo a um ponto em que está mesmo muito muito bonito. A luz, o vídeo, e tudo mais. E ele agora está a cantar em português, e eu acho que a voz dele se destaca muito mais em português, e está muito mais bonita. Ou seja, ele está a cantar cada vez melhor.
Portanto, é esse orgulho de tu acompanhares um amigo há tanto tempo ao ponto de ainda teres a felicidade de lhe poder dizer "está cada vez melhor". Isto faz com que eu tenha vontade de continuar a acompanhar. Portanto, posso conhecer todas as Angel Olsen's desta vida, mas a Angel eu só vejo uma vez por ano, a cada um ano ou dois, conforme ela edita discos, não é? Estas pessoas que são assim mais pequeninas em Portugal é que são aquelas com quem eu aprendo mais, e que me dão mais espaços para estar presente em momentos íntimos. Que depois me dão a capacidade de fazer estas fotografias com pessoas que podem ser mais ou menos conhecidas.
Entrevista por Alexandre Matos e Ana Francisca Gomes
Comments