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Crónica: Mais um artigo da “PIDE feminista”

  • Foto do escritor: Inês Delgado
    Inês Delgado
  • 19 de jan. de 2021
  • 4 min de leitura

Atualizado: 20 de jan. de 2021

Fotografia: Google Images

Quando o humorista Diogo Faro usou a ironia no Twitter para referir o, na altura, recente videoclipe, da música ‘BFF’, do rapper Valete (“A nova música do Valete está excelente. É importante em 2019 continuar a retratar a mulher como propriedade do homem e o homem como um atrasado mental”), poucos valorizaram o cerne da piada.


Os primeiros passos do rap em Portugal tornaram-se evidentes em meados dos anos 80 (1986-1998), tendo vindo a crescer substancialmente desde então. Os autores apresentavam-se como protagonistas sociais, pintores das suas condições de vida, mas à medida que foram chegando à indústria, o megafone entoa sempre a mesma premissa: dinheiro, fama e mulheres. São temas aliciantes para quem vive a acreditar que o arquétipo de “ser um homem” é representado por todas estas coisas, e a virilidade se pauta pelo poder sobre o sexo oposto.


Estamos no coração da era digital, em que o Youtube parece mais fidedigno que uma aula de história, e é um caso problemático esta enchente de rappers a cantar músicas que promovem a misoginia e o machismo, ainda para mais, contabilizando que a grande percentagem do seu público é cada vez mais jovem. Isto é, numa frase curta e clara: jovens que crescem a aprender que o homem tem um poder tirano sobre a mulher (“Eu mando em ti e tu mandas na house”), que a significância desta é reduzida (“És mais superficial do que um penso higiénico”) e que o sexismo não só é banal como aceitável (“Duas vacas dentro da minha cama”).


Não tenho medo de recair nas ideologias fundamentalistas que se parecem sempre aliar ao lado do contra nestas discussões, mas é importante advertir para a minha total consciência e interesse pela poesia urbana como ato de resistência e meio de intervenção social. Que o rap é uma arte, não há dúvidas, mas quando muitas vezes me questiono do propósito da mesma, há questões esganadoras.


E, ainda que eu saiba que este tema recai numa chuva meteórica de outras questões filosóficas como a liberdade de expressão, o propósito que a arte deve ou não servir (se é que este existe realmente) e os direitos dos indivíduos, uma coisa seria de esperar que fosse consensual – a mulher não é um cabide de pendurar opiniões, nem uma descartável que de nada serve após o rolo ser revelado – e é frustrante compreender que, nos tempos que correm, isto ainda não é uma verdade universal.


De caçadeira em punho contra a namorada adúltera (“Revolta macabra ele quer ver a cabra morta”), este videoclip de Valete retrata muito do que há de errado na indústria do rap em Portugal. O rapper afirmou, em entrevista ao Diário de Notícias, haver uma “PIDE feminista” atrás do rap português, recaindo na falácia que ainda paira no ar e defende que isto do feminismo é uma moda qualquer. A mulher-objeto é o tema com mais enfoque nesta onda de hip-hop mais recente. A mulher “fácil” (“Má fama só cresce porque na verdade sempre foste fácil”), a mulher troféu (“Nunca a mesma no meu corpo”), esta venda módica de que a mulher é “tipo uma porca numa pocilga”, facilmente substituída por outra à sua semelhança porque “se me faltar ao respeito digo que não faz falta”.


A lista é vasta, com letras demasiado gráficas, e não se mastiga bem este discurso quando os números de mulheres vítimas de violência doméstica só aumenta.


Como dizia inicialmente, estamos no coração da era digital, em que tudo, bom e mau, se encontra à margem de um clique e, pode até ser pretensioso considerar que há, efetivamente, frases que não deviam constar no protótipo do hip-hop de qualidade. E, sejamos sinceros, qual é o interesse de ouvir letras odiosas de pseudo-machos, vestidos de falsas razões, que, para se elevarem socialmente, avaliam o seu prestígio e sucesso pela quantidade de amantes que tiveram, ou número de engates fáceis que viveram?


Não é só o facto de um público jovem consumir este tipo de músicas, com este tipo de letras, é a certeza irrevogável que denota para uma admiração pelo “mauzão” de “arma em punho” e repulsa pela figura feminina. Isto não é poesia. São resquícios insultuosos de balas que são disparadas há muito e optamos, demasiadas vezes, por ignorar.


Mas praticando o exercício final, da virar a arma contra quem para nós a aponta, como seria, uma mulher rapper vista, se cantasse músicas com frases semelhantes a “dou-lhe ação sem cedilha” ou se se dirigisse ao homem como “uma doninha”? Se se referisse ao sexo oposto, numa “simples” letra de uma das suas canções, e se desmanchasse em “poesia” como: “Encharcada de moralismo, sempre armada em puritana/ Agora vais sentir a sequela, com a caçadeira enfiada na tua goela/ A bala a perfurar a traqueia, e o teu corpo como plateia/ Enquanto a morte fraseia”?


Colocar as mulheres numa posição inferior é um método fútil e desajuizado que banaliza a violência e é, no entanto, suposto ser aceite passivamente, porque é coberto pela aura da palavra “arte”. Quando ouço rap, quando ouço Valete, espero rimas fortes e mensagens interventivas que nos abram portas à compreensão e nos tornem melhores seres humanos. Não isto, que nem devia ser falado porque não devia acontecer. A misoginia está entranhada em músicas de todo o tipo, mas especialmente no rap, e isto revela uma enchente de problemas por resolver, que também não deviam existir.


Por isso, espero que este artigo incomode, que os tiros “com a caçadeira enfiada na goela”, que Valete canta, perfurem a noção dos mais apagados. O feminismo não é “uma moda qualquer” e o rap misógino e machista não está, nem nunca poderá estar, na moda.




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