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SOS Racismo e a incessante luta pela Humanidade

  • Foto do escritor: Inês Delgado
    Inês Delgado
  • 26 de nov. de 2020
  • 10 min de leitura

Atualizado: 18 de jan. de 2021

Mamadou Ba - Global Images

A Associação SOS RACISMO combate o racismo estrutural português desde 1990. É a associação portuguesa contra o racismo, com o estatuto de utilidade pública, mais conhecida no país. Entre inúmeros contributos para a integração da população imigrante e das minorias étnicas, luta pela conceção de um quadro jurídico-legal suscetível de punir eficazmente comportamentos racistas e xenófobos.


Na sede de Lisboa, é mantido um vasto centro de documentação com os principais livros publicados pela SOS RACISMO ou de temáticas em que trabalham, bem como o arquivo de imprensa, aberto ao público que o deseje consultar. São também mantidos todos os registos de episódios racistas denunciados pela associação.


Em entrevista a Mamadou Ba, dirigente do SOS RACISMO, ficou claro que, em Portugal, há uma estrutura cultural que premeia uma cultura de racismo. Ou seja, existe uma estrutura social-económica histórica que faz com que o racismo esteja presente em todas as dimensões da nossa vida coletiva. E, focando o tema, na presença da Extrema-Direita em Portugal, Mamadou Ba diz nunca ter vivido na ingenuidade de pensar que esta não existia no país democrático em que vive. Sabia que “no dia em que a extrema-direita encontrasse um líder "estratega político", esta iria capitalizar-se porque é uma ideologia que existe na sociedade portuguesa”.


Nos últimos cinco anos, é evidente o aparecimento de Sindicatos com proximidade à extrema-direita e alguns, inclusive, assumidamente de extrema-direita – como, por exemplo, o Sindicato Vertical da Polícia e o Sindicato Unificado da Polícia, sindicatos cuja direção não esconde a proximidade e filiação ideológica com André Ventura.


Este crescendo antidemocrático tem, cada vez mais, diversas razões para causar preocupação a qualquer cidadão português. Em agosto deste ano, um grupo de nacionalistas (“Resistência Nacional”) pôs máscaras brancas no rosto e muniu-se de tochas para protestar, em frente à sede da associação SOS Racismo, contra o “racismo antinacional” e homenagear “polícias mortos em serviço”. Esta ação seguiu-se ao ato de vandalismo na fachada do prédio em julho, onde ficou pichada a frase “Guerra aos inimigos da minha terra”.


"Resistência Nacional" vandaliza a fachada da SOS RACISMO, julho 2020 (Google Images)

Na altura, Mamadou Ba, em conversa com o Público disse que “uma coisa é fazerem uma manifestação no espaço público em que assumem uma posição política contra o anti-racismo, o que é inaceitável em democracia, mas elegerem uma organização antirracista como alvo a abater, fazer ameaças de morte e, não contentes, fazerem uma parada militar à moda de Ku Klux Klan ultrapassa todos os limites do confronto ideológico.”


O dirigente da SOS RACISMO, não se mostra indiferente à quantidade de ameaças que chegam à sede da associação, vindas de elementos da extrema-direita. A associação tem, por norma, apresentado queixas no Ministério Público, por ofensa à integridade física, ofensas morais, danos patrimoniais e incitamento ao ódio e violência.


E quando, muitas vezes, essa violência advém de forças policiais, salienta-se, para além disso, a presença de símbolos racistas na polícia. Símbolos esses que podem ser tatuagens com signos, palavras ou desenhos de natureza partidária, extremista, racista ou que incentivem à violência.


A PSP, ao fim de doze anos, decidiu atualizar este ano as normas sobre o aprumo, apresentação e uso do uniforme dos polícias, registando que “a PSP sentiu a necessidade de atualizar estes normativos porque aquilo que socialmente é considerado adequado também se vai alterando”.


As novas normas rapidamente foram alvo de contestação por parte de polícias, tendo o Sindicato Nacional da Polícia (Sinapol) afirmado que as novas normas culminaram em centenas de reclamações em protesto pelo seu "conteúdo, que impede de forma grosseira direitos, liberdades e garantias dos cidadãos civis que escolheram a profissão de polícia". Em vez de ser determinada a expulsão de alguns “agentes do ódio”, a Polícia optou por lhes dar seis meses para apagaram as provas do crime racial.


Fotografia: Global Voices

Ricardo Cabral Fernandes, em declarações ao Espectro, afirmou que “O Manuel Morais (ex vice-presidente do Sindicato da PSP) denunciou racismo dentro da polícia e denunciou que elementos tinham tatuagens e símbolos racistas e neonazis”. Salientando que nada é feito para combater comportamentos racistas presentes nas forças policiais portuguesas. As novas normas surgiram meses depois das denúncias de Manuel Morais, dando seis meses aos agentes policiais para “removerem as tatuagens com esses símbolos”. Uma outra forma de dizer “tu podes sê-lo, podes ser racista, desde que não o mostres”, referiu Ricardo Cabral Fernandes.


Mesmo sabendo que a inspetora-geral da Administração Interna, Ana Cabral Ferreira, lançou o Plano de Prevenção de Práticas Discriminatórias, para prevenir situações de racismo e xenofobia no seio das forças de segurança, parece continuar ligeiramente impercetível o que está a ser feito para combater o problema, enunciado por vários organismos internacionais.


Em entrevista com Mamadou Ba, o Espectro encontrou resposta para algumas questões acerca desta problemática.


Começando por, invariavelmente assumir que Portugal é um país racista, mesmo que ainda “caia o Carmo e a Trindade” quando a frase é proferida, Mamadou salienta que isto significa que “quando dizemos que Portugal é um país racista, o que nós queremos dizer é que há uma estrutura social-económica histórica que faz com que o racismo esteja presente em todas as dimensões da nossa vida coletiva”. O racismo, no país, está presente como a nossa História e não “vai embora” facilmente. Não é uma contingência, não é uma circunstância passageira, nem um acidente, não se trata de uma questão intrapessoal.



Um dos princípios da luta antirracista da SOS RACISMO, é o enfoque na Humanidade como um todo e o apelo à consciencialização disto: “as pessoas são todas iguais, não há nada que as diferencie, a não ser as suas particularidades geográficas e culturais. Mas enquanto ser humanos, enquanto pessoa portadora de dignidade, qualquer pessoa, seja ela amarela, às riscas ou preta, merece ser respeitada".


Desse modo, e partindo desta afirmação inicial, é imprescindível tentar compreender como é que se desconstrói o racismo estrutural.


Ba afirmou que muito passa pela educação e pela representatividade cultural, coisas que estão em falta no sistema português. “Há coisas que têm que ser feitas na área da educação, na área das políticas públicas e na própria formulação da política que representa a diversidade cultural, como é que projetamos as questões de representatividade política, representatividade económica, representatividade simbólica do ponto de vista da valorização das culturas que existem na nossa sociedade”.


Protesto contra o racismo, junho 2020 (André Dias Nobre)

O “défice de igualdade” deve, aos olhos de Ba, ser combatido através da alteração completa das “políticas públicas na área da educação, dar apoio para a igualdade, como acesso a emprego, acesso a habitação… isto tem de ser uma das prioridades da nossa sociedade”.


As minorias sentem que não são suficientemente, ou totalmente, representadas nas mais variadas esferas públicas portuguesas. “Quando uma criança negra ou cigana olha para o espaço público, seja na televisão, no desporto ou na política, ela sente-se representada por aquilo que vê?” é uma das questões que Mamadou nos faz, deixando o silêncio falar mais alto, porque a resposta é demasiado óbvia. E não é a resposta feliz.


Se há algo que pode atrasar o progresso é a presença do CHEGA na Assembleia e o “ataque à democracia” que a voz, cada vez mais gritante, da extrema-direita faz em Portugal. A banalização da extrema-direita é cada vez mais palpável quando constatamos que André Ventura foi eleito. “[…] se quem está num órgão de soberania pode ter atitudes racistas isto tem uma consequência enorme para todos nós porque normaliza esta ideia de que isto não é abjeto, é uma coisa que é aceitável em democracia porque faz parte da disputa democrática”.


Em Portugal, o racismo cultural vende-se barato – diz-se às pessoas que por terem uma determinada forma de estar na vida, e, ou uma determinada cultura, que são um problema para o resto da sociedade. Munindo-se de uma estratégia de “captura institucional dos instrumentos de repressão ou do monopólio de violência nos estados democráticos - a Polícia e a Justiça” a extrema-direita tem proliferado para movimentos sociais, como o já mencionado Movimento Zero, e esses movimentos, não sendo sindicatos mas sim moviementos sociais, são difíceis de derrubar.


Fotografia: Global Images

Verificamos, cada vez mais, não só, sindicatos claramente próximos da extrema-direita, como alguns inclusivamente de extrema-direita.


Os polícias transformaram-se uma espécie de tampa da panela de pressão, aumentando ainda mais a tensão social, entregados aos destinos menos aceitáveis de lidar com o dissenso. Nas forças de segurança, observámos uma crescente normalização da violência como instrumento de regulação das relações políticas e sociais, o que segundo Mamadou “não pode ser”, mesmo sabendo que “dá jeito à extrema-direita na polícia que haja sempre focos de tensão para justificar a sua existência e o seu crescimento”.



“Fazem sempre um jogo perverso de comparar atitudes de pessoas racializadas com as atitudes deles, como se a responsabilidade fosse igual. […] A polícia tem de intervir com o mesmo procedimento deontológico quando intervém na Cova da Moura ou na Lapa”.


A prevalência ideológica de que, ao serem admitidos os problemas de racismo nas instituições, estas estão a ser fragilizadas, confirma, mais uma vez, o mote da conversa com Ba que alertou para a estratégia da maçã, como metáfora para o problema: “Todos, quando falam da questão da violência racial policial, começam logo por dizer “são casos isolados, nós respeitamos e confiamos na nossa polícia”. “Claro que sim, mas nós se temos um cesto de fruta e alguma está podre, não adianta andar a dizer que o resto da fruta está boa porque se mantivermos lá a fruta podre, o resto do cesto vai apodrecer”.


A fruta podre pode, até, cair da árvore sozinha, mas quando está num cesto de frutas saudáveis, é fácil contaminar as demais. As mensagens de ódio proliferam-se com bastante rapidez. E é mais fácil encobrir o racismo, do que admitir que este existe. Fazendo a ponte para o assunto das tatuagens racistas e remoção das mesmas. A tatuagem desaparece, mas a ideologia do polícia continua presente.


Estes detalhes revelam alguma infantilidade política, não é coerente acreditar que o Estado possa achar que é desta forma que protege as instituições. “porque a democracia é o único poder que temos ao qual delegamos o poder de gerir a violência de Estado. Isto é uma responsabilidade enorme”.


“A polícia é o único instrumento de gestão do monopólio da violência do Estado, que pode acioná-la em determinadas circunstâncias”. Mas não é normal, nem deve ser banalizada a violência racial praticada, ao longo dos anos, pela polícia. Não adianta normalizar a ideia de que a violência pode ser acionada por outros motivos que não estão previstos na ordem constitucional. “Sobretudo que carregam determinadas subjetividades, nomeadamente o racismo”. Quando a violência policial encontra um vínculo para se banalizar, estamos a perigar a própria ideia de segurança que pretendemos ter.


“Nos últimos dez anos, mais de 79 casos de violência policial racista foram objeto de intervenção sancionatória e não resultaram em nenhuma sanção”. São dados apresentados pelo dirigente da SOS RACISMO, que não poupa exemplos de violência racista praticada por polícias, como o caso Alfragide, o que aconteceu no ano passado a uma família do Bairro da Jamaica, os incidentes da Cova da Moura, a caso Cláudia Simões… “Se olharmos para o que aconteceu em Alfragide, por exemplo, […] o Ministério Público que decidiu, e bem, abrir inquérito. Acusaram os agentes envolvidos de vários crimes, entre eles racismo e, no meio do julgamento, o próprio Ministério Público decide deixar cair as acusações que tinha feito”.



Os confrontos e descrença que as minorias criam em relação à polícia, devem-se em grande parte a isto. Não se veem representados, nunca lhes é feita justiça. A questão mantém-se: e porquê?


Não são denúncias de racismo nas instituições policiais que as fragilizam, mas sim, a própria presença de racismo na polícia, porque é uma fragilidade democrática. “A partir do momento em que a comunidade não se revê ou não confia na polícia porque acha que ela não atua de forma isenta, a partir daí ela não tem credibilidade e isso também afeta o resto da estrutura orgânica da democracia”.


Manifestação contra o assassinato de Bruno Candé (Lusa)

Para não permitir que a fruta podre contamine a fruta saudável, e preciso ter a coragem que muitos “polícias bons” não têm. Um caso corajoso é Manuel Morais, mas que depois das denúncias que fez acerca da Polícia, o ex vice-presidente do Sindicato da PSP foi afastado das suas funções. “Isto cria um grande entrave”, nas palavras do entrevistado,” quando uma pessoa levanta a voz para além daquilo que a ordem vigente acha que é permitido, passa a ser pessoa non grata, passa a ser um alvo a abater. O que se passa com Manuel Morais, passa-se comigo. […] Ninguém devia ser amordaçado por dizer o que o Manuel está a dizer.

Aliás, é um bocado ingrato para ele, sinceramente, porque ele ao mesmo tempo que diz isso, é os primeiros a dizer “Eu confio na Polícia porque eu sou polícia, nem todos os polícias são assim”. E é verdade. É absolutamente verdade. O SOS Racismo tem sócios polícias, nós temos militantes que são polícias. Nós sabemos que nem toda a polícia é racista, isso é claro”.


É complicado fazer a ponte distintiva entre os polícias que exercem as suas funções e desejam, efetivamente, melhorá-las e polícias que se movem pelo discurso do ódio. Muitas vezes as condições de trabalho das forças de segurança não são satisfatórias. Há, portanto, uma fragilidade dos direitos e das garantias laborais dentro das mesmas que cria um sentimento de abandono num setor importante, em relação aos outros partidos. “Acoplando as tensões sociais, aqueles que têm dificuldades variadas de carreira, de conforto laboral, e ao serem confrontados com as agruras e dificuldades de pessoas que estão, também, em situação de exclusão na generalidade e de revolta social legítima, criamos aqui um caldo bombástico, para que haja duas coisas que são importantes para a extrema direita cavalgar, em todo o lado. Isto foi o que o André Ventura percebeu”.



A extrema-direita percebeu que a melhor maneira de ganhar rapidamente visibilidade social, maior influência e penetração mediática, era agarrar-se aos temas que instigam o medo e o desconforto social generalizado. O jogo perverso que as forças policiais racistas, e a extrema-direita, muitas vezes fazem de “Não temos condições para garantir a ordem, porque não há meios”, é perverso porque não é movido pelo desespero por melhorias, mas sim pela crença de que apenas uma sociedade com valores fundamentalmente fascistas e racistas conseguiria garantir melhorias no setor.


Quando Mamadou Ba mencionou os “troles” que enchem as suas redes sociais de mensagens de ódio, aproveitamos por destacar as declarações de Paulo Rodrigues, Presidente da Associação Sindical dos Profissionais da Polícia, que acusou algumas entidades políticas e associativas, como o Bloco de Esquerda e o SOS Racismo, de incitamento à violência e de colocarem a população contra a Polícia.


Protesto contra o racismo, junho 2020 (Manuel de Almeida (Lusa))

Para Mamadou, a resposta não é difícil e começa com um desabafo “Eu tenho pena”, acabando por satirizar a ironia das palavras proferidas por Paulo Rodrigues. “[Paulo Rodrigues] pode inventar tudo e mais alguma coisa sobre o que representa o posicionamento público das organizações, nomeadamente a minha, o SOS, mas há uma coisa que ele não pode dizer nunca. O SOS nunca matou ninguém. Ele não poderá dizer isso dos seus colegas que já mataram pessoas”.


O preceito constitucional determina claramente que as pessoas não podem ser discriminadas em função da sua cor de pele, da sua orientação sexual, da sua condição social e o que é que rege uma democracia é a constituição. “É o nosso valor maior”.

E é pela defesa do “nosso valor maior” que a SOS RACISMO luta todos os dias. Numa longa batalha contra o racismo e a intolerância, ideologias extremistas como as aqui referidas.


Protesto contra o Racismo, junho 2020 (André Dias Nobre)

Quase a terminar a nossa entrevista, o Espectro questionou Mamadou Ba acerca da exerção do seu trabalho e das muitas repercussões que isto pode ter. Questionámo-lo acerca do medo. “As pessoas podem ter medo, e devem ter medo, é uma coisa saudável. […] Tem de ser um estado de alerta para poderem proteger-se, proteger os seus, proteger a sua atividade, mobilizar mais gente para mostrar que o perigo é real, existe e é por isso que têm medo. Porque há um perigo mesmo que é real, e que é ninguém pode viver com medo numa sociedade democrática”.



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